Não acredito em vida espiritual após a morte física, após a dissolução da mente. Por isso a vida de cada criatura me parece tão preciosa. Por isso me preocupo tanto com ela, a morte física. Com a morte dos outros, em menor grau. Eu me preocupo principalmente com a minha morte, com a dissolução da minha consciência, porque a minha morte será também a morte de todos os outros. Quando eu morrer tudo o que existe desaparecerá, será a extinção definitiva do universo: adeus sol, adeus brisa, adeus família. Às vezes me aborreço por me preocupar mais com minha morte do que com a morte dos outros. Isso não é nada nobre. Isso não é nada louvável. Então lembro que não sou o semideus perfeito e invejável do poema de Pessoa, e fico mais tranqüilo. Existe certa nobreza em reconhecer as imperfeições naturais, não? Somos todos humanos, demasiado humanos.
No início dos tempos (dos meus tempos), lá pelo século 15 depois de meu nascimento, eu estava certo, certíssimo de que todo mundo se preocupa com a morte. Eu estava certíssimo de que essa era a grande obsessão das pessoas: a inevitável extinção definitiva do universo. Com o passar dos séculos fui percebendo que há outras preocupações maiores e mais permanentes: as novas tendências da moda, a política externa norte-americana, a queda do índice da bolsa de valores e a entrega do Oscar, por exemplo. Não estou dizendo que essas não são preocupações legítimas. É claro que são. Mas a certeza da morte… Sempre fico muito espantado com as pessoas altamente especializadas, que conseguem falar longa e brilhantemente sobre neurologia, política, teatro, sexo, economia, física quântica, música, astronomia ou lingüística, mas jamais inserem nesse discurso o grito reprimido, universal: “Nós vamos morrer!”
Não estou pedindo que expliquem ou justifiquem a morte física, que revelem de uma vez por todas qual é o real sentido da vida, porque a morte não tem explicação nem justificativa racional, tampouco a vida. O sentido e a beleza da vida estão nela mesma, na sua extensão e na sua qualidade. Antes do nascimento não há nada, assim como não há nada depois da morte. Sempre que alguém — filósofo, cientista ou sacerdote — tenta explicar e justificar a vida e a morte, voa para todos os lados um sem-fim de mitos, fábulas ou fantasias mais ou menos organizados. Não é isso, explicações e justificativas, o que eu estou pedindo. Eu gostaria apenas que se discutisse mais sobre esse assunto. Sem afetação ou solenidade. Eu gostaria que as pessoas se preparassem melhor para a morte, eu gostaria que se preparassem de maneira mais saudável. Sem histeria, depressão ou pânico. Para a morte, a qualquer momento.
Amigos me avisam, durante o café, que o tabu em torno da morte, o pacto de silêncio em relação a esse tema tão importante, é a maneira que a sociedade de consumo encontrou pra se proteger do pavor, do horror, da angústia. Faz sentido.
Edição comemorativa
Vejam só o perigo que é se deixar levar, logo cedo, pelo fluxo de consciência, pela livre associação de idéias. Eu planejava escrever dois ou três parágrafos sobre o romance Neuromancer, que está completando vinte e cinco anos, e de repente fui seqüestrado por outro assunto. É claro que o seqüestro foi muito incentivado pelo romance em questão, que em certos momentos propõe novas e inquietantes idéias a respeito da morte física.
Neuromancer foi escrito por William Gibson, um dos articuladores do movimento cyberpunk, que renovou a ficção científica dos anos oitenta, atualizando seus principais temas. O romance saiu em 1984 e é o primeiro da Trilogia do Sprawl, tendo sido seguido por Count zero (1986) e Mona Lisa overdrive (1988). Muito do que vocês viram (por exemplo, a trilogia Matrix, dos irmãos Wachowskis) e ainda vêem hoje no cinema veio dessa trilogia de Gibson, principalmente o ciberespaço, sua fauna e flora, e o ato de plugar o cérebro (jack in), capaz de lançar a mente humana nesse espaço virtual delirante.
Fábio Fernandes, tradutor de Neuromancer e de outro romance de Gibson, o não menos provocativo Reconhecimento de padrões (2003), também estudou a obra do escritor norte-americano em sua tese de doutorado, defendida na PUC-SP e intitulada A construção da cultura cyber: William Gibson, criador da cibercultura (2005). Palavras de Fábio, em sua tese:
Outra questão importante em Neuromancer é a presença de inteligências artificiais como personagens ativos na trama. Não se trata de máquinas diabólicas querendo dominar a humanidade, como no livro clássico Colossus, de D. F. Jones (1966) ou mesmo no filme Matrix, de Andy e Larry Wachowski (1999), mas de entidades autônomas e conscientes buscando não vingança ou dominação, mas liberdade e independência de seus criadores. É interessante apontar a dicotomia entre as personagens de carne e osso e as de silício em Neuromancer. Os humanos no romance de Gibson tendem a agir como máquinas, enquanto as máquinas tendem a agir como humanos.
Humanos, máquinas, ciberespaço… O que a morte física tem a ver com tudo isso? Muita coisa. Nos romances de Gibson, os seres humanos possuem diversas próteses e vários implantes espalhados pelo corpo todo. Muitos desses componentes industrializados melhoram a capacidade de membros e órgãos naturais, aumentando sua vida útil. Outros ampliam consideravelmente certas capacidades mentais, melhorando os cinco sentidos e criando outros, artificiais. Tudo isso leva diretamente à questão do fim da morte física e do início da vida eterna, por meio da preservação da identidade, da consciência e da subjetividade do sujeito nos vastos labirintos cibernéticos.
Telepatia e telecinesia
Há duzentos anos, quando Mary Shelley escrevia seu romance mais célebre, Frankenstein, dispositivos como o pulmão artificial, o marca-passo e a prótese da mão ou a do antebraço, acionadas eletricamente, eram objetos apenas da ficção científica. Hoje isso é café pequeno e as neuropróteses também já estão sendo desenvolvidas. Um rapaz tetraplégico de vinte e cinco anos de idade já consegue acender as luzes de casa, mudar o canal da tevê e ler e-mails utilizando apenas sua mente, graças a uma prótese neurológica desenvolvida a partir de pesquisas feitas na Universidade Brown. Esse implante foi batizado de BrainGate. Li recentemente na Scientific American que já estão sendo testados em laboratório os dispositivos que permitirão em breve a transmissão de pensamento. Isso hoje. Daqui a duzentos anos… A preservação da identidade, da consciência e da subjetividade do sujeito? A imortalidade da mente?
Eu desconfio de todas as promessas da ciência e dos cientistas. Eu desconfio dessa fixação que a humanidade tem pelo progresso tecnológico. O desenvolvimento tecnológico, como tudo o que nasce das mãos humanas, também expressa pulsões sinistras, perversas ou doentias de nossa espécie. No final do século 19 o positivismo e todos os defensores do método científico, entusiasmados com a máquina a vapor e com o progresso tecnológico, prometeram a fartura e a ociosidade para toda a raça humana, e pouco tempo depois o que o mundo teve? As duas guerras mundiais, o nazismo, o estalinismo e outros devastadores efeitos colaterais. William Gibson também compartilha dessa desconfiança. O futuro representando em seus livros, dominado pelas corporações e pelos psicopatas digitais, está muito longe de realizar o paraíso artificial tão perseguido pela razão iluminista.
O fato é que o mundo está caminhando nessa direção e não há nada que as pessoas — desconfiadas ou não — possam fazer pra mudar isso. Se hoje vivemos cercados de máquinas indispensáveis, em breve, na era dos ciborgues, o que chamamos de corpo será um misto de matéria orgânica e cibernética. Então essa criatura meio homem meio máquina redefinirá a velha noção renascentista de homem. Mas por que o mundo está caminhando nessa direção? Que força é essa, tão irracional e irrefreável, que nos compele a realizar nos laboratórios prodígios muito mais espantosos do que os ambicionados pelos alquimistas? Penso que é o desejo primitivo, violento e irreprimível de autopreservação. A vontade de escapar da morte física, da dissolução da mente.
Transcendência neurológica
Neuromancer, cujo tratamento barroco, cheio de filigranas e pormenores, está bem acima da média do gênero literário a que pertence, age de muitas maneiras na sensibilidade do leitor. Eu fui pego pela questão da imortalidade da consciência, que não é sequer a questão central do romance. O livro de Gibson, cuidadosamente traduzido por Fábio Fernandes, não apenas toca nesse tabu tão evitado, o da morte do sujeito, como faz isso com inteligência e perspicácia incomuns. Como? Sugerindo nas entrelinhas o seguinte: no momento em que um indivíduo conseguir copiar (back up) todo o seu sistema mental num poderoso minidrive, sua imortalidade terá sido potencialmente alcançada. Quem nascer daqui a duzentos anos talvez tenha a oportunidade inédita na História de viver dez, mil, dez mil anos. Ou pra sempre.
A transcendência neurológica é a única possível. Essas especulações levam o leitor a um conjunto de questões técnicas, éticas e morais igualmente inéditas na história de nossa espécie. Pena que essas questões não estejam aparecendo com regularidade nos pontos de discussão mais freqüentados pela intelligentsia brasileira. Tampouco nos livros de nossos melhores autores.
Na minha opinião, salvo raríssimas exceções, a corrente principal da nossa literatura não conseguiu apresentar nada de novo, nada de vivo, nos últimos dez anos. Livro após livro as mesmas formas e os mesmos conteúdos têm sido revisitados monotonamente por centenas, milhares de estreantes e veteranos. Acredito que a mistura de gêneros e de linguagens é a melhor maneira de melhorar essa situação. A ficção científica, gênero riquíssimo em novos assuntos e em instigantes desafios da linguagem, precisa ser descoberta pela corrente principal da literatura brasileira. E vice-versa.