Fizemos a destacados escritores, editores, críticos, professores e jornalistas culturais brasileiros a pergunta:
Tendo em vista a quantidade de livros publicados e a qualidade da prosa e da poesia brasileiras contemporâneas, em sua opinião, a literatura brasileira está num momento bom, mediano ou ruim?
Alcir Pécora
A meu ver não existe evolução literária, nem no Brasil, nem fora dele. Se há um lugar onde a ideia de evolução não funciona, esse é justamente o da literatura, e me surpreende que ninguém tenha tocado nisso até agora. Isso deve ser sinal de alguma coisa. Espero que não seja efeito de uma crença generalizada numa narrativa histórica teleológica, progressiva e etapista, em que o passado é a infância e o presente, o ápice. Fosse assim, seria sintoma daquilo que Hartog chamou de presentismo, pois submete o passado à ideia de pré — ou seja, como falta ou infância em relação ao presente — e enclausura a potência do futuro no imediatismo das escolhas contemporâneas.
A ideia de evolução literária tem interesse muito reduzido no campo literário, por muitas razões:
1) Trata-se de um campo que se constitui como de longa duração (para não falar em termos idealistas de eternidade ou transcendência). Isto é, alguns autores do passado continuam agora tão vivos e, por vezes, até mais influentes do que quando escreveram. Isso porque a interpretação deles, ao longo do tempo, se enriqueceu de muitas maneiras, tornando-os interlocutores necessários da compreensão de diferentes tempos e igualmente do presente. Sob muitos aspectos, podemos dizer que esses autores supostamente do passado determinam o presente, pois fornecem paradigmas para a interpretação dele;
2) Não dá para falar seriamente em evolução porque o campo da cultura — constituído de obras de tempos diversos, alimentadas por interpretações várias e igualmente de tempos distintos — não tem uma direção única: as obras não estão correndo todas para o mesmo fim, como se fossem atletas numa pista estreita;
3) O evolucionismo aplicado à cultura favorece uma ideia linear de cultura, como essa de corredores numa mesma baia, que começam bebês e terminam atletas triunfantes. A imagem é caricata propositalmente, porque a ideia é caricata: quem é o bebê aqui? Homero? Ésquilo? Virgílio? Dante? Petrarca? Camões? Shakespeare? Góngora? etc. etc. Quem é melhor do que quem? De que evolução se pode falar quando se pensa em nomes como esses?
4) Não dá para evoluir para além da forma que cada grande autor efetivamente logrou produzir. Cada uma delas é única em si mesmo;
5) O máximo que podemos dizer a respeito do conjunto das obras de arte é que todas elas têm alguma exigência do novo, mas o novo não é o que evolui em relação ao mais antigo, mas o que se indetermina em relação a ele, o que não pode ser deduzível dele, uma vez que produz uma forma que não estava prevista nos modelos anteriores. E como falar em evolução quando a condição do que segue é a indeterminação?
6) Cada nova grande obra bagunça a ordenação hierárquica inteira do campo e o refaz de alguma maneira: o que parecia na frente vai para trás, quem estava do lado de um vai para o lado do outro, quem estava nos lugares mais iluminados vai para a sombra etc. etc. Quando falo em bagunçar os tempos da cultura, penso não apenas no tempo do presente, mas também nos do passado e do futuro: a obra realmente nova desarticula a cadeia evolutiva que não era natural, mas que estava naturalizada de forma indevida;
7) Também as formas literárias não podem ser pensadas como evolução estrita de uma em relação às outras; ainda que elas se sobreponham, se cruzem, uma forma nunca é o resultado dedutivo do encontro das anteriores. Acidentes acontecem. O romance não é derivado das formas anteriores, mas uma resolução que apenas se compreende em obras particulares diversas, em diferentes momentos e situações históricas. A epopeia não pode ser posta na origem do manifesto de vanguarda, a não ser como metáfora interpretativa aplicada a casos particulares;
8) Há muito mais o que dizer, mas me restrinjo à retomada de um ponto decisivo: boa parte da história das obras é contingencial e não resultado de uma intenção ou de uma superação. Originais extraordinários, que poderiam ter impacto decisivo, se perdem na chuva, nos baús, nas prisões, enfim, em desastres e imprevistos; outros papéis, secundários, passaram a ocupar lugares chaves e tiveram um papel histórico considerável; um incêndio matou um autor anônimo que finalizava uma grande obra, o suicídio de outro destruiu várias alternativas de futuro. Isso não é evolução, é contingência, catástrofe, sorte, fortuna, o que quiser.
Enfim, me sinto como se começasse apenas uma conversa: escrevo velozmente, e me sinto profundamente culpado de não poder dedicar o tempo de reflexão que qualquer reflexão séria exige.
Alcir Pécora é professor de literatura da Universidade Estadual de Campinas
Chico Lopes
A despeito dos desânimos e suplícios pelos quais passam os escritores novos, não publicados, que têm uma compreensível ansiedade com serem lidos, achando que a selva editorial está fechada para os seus tambores, acredito que o momento é de mediano para bom.
Porque acho que, a rigor, não pode ser classificado de ruim um mundo editorial tão agitado por visões contraditórias, autores de todo tipo, livros de toda ordem, saindo, pedindo atenção. Pra ser justo com isso, os críticos teriam que ler muito, teriam que ler tudo, o que é praticamente impossível, e, na verdade, todos eles estão presos a certos nichos, predileções e grupos, o que também é inevitável. O fenômeno é daqueles cuja amplidão impele à modéstia e à cautela nos diagnósticos.
O que me parece é que os escritores brasileiros deveriam ter menos medo da literatura de gênero, praticar o policial, o suspense, o terror, a fantasia, a ficção científica, serem menos geniais e terem mais peito pra concorrer com um mercado estrangeiro em que muita coisa medíocre, mas capaz de entreter, dá o tom.
Isso não seria necessariamente ceder ao tom comercial predatório, seria ter um pouco menos de pretensão e prestar mais atenção ao que os leitores (que, afinal, nem são tantos) procuram. Mas já é generalizada a percepção de que não faz muito sentido manter um elitismo daqueles de nariz empinado para o cheiro de concessão prostituída do mercado. Os autores brasileiros querem ser lidos, percorrem pequenos e grandes circuitos de palestras, participam de concursos, não perdem oportunidades aqui e ali, e desejam para seus livros difíceis o que todos desejam: leitores atentos ou meros fruidores, o que seja.
O que se tem a fazer é aperfeiçoar o mercado, injetar nele ansiedades estéticas um tanto mais refinadas, mas jamais pretender que ele seja a Grande Besta digna de uma única coisa: bombardeios. Há muita impotência chorona e pouco digna de confiança em muitos autores que não fazem sucesso. O darwinismo do mercado os apavora, mas em nenhum sistema literário do mundo haverá quem não alimente queixas.
As pequenas editoras querem crescer, e merecem estímulo e uma situação menos desesperadora, muitos autores bons querem publicação, e a merecem. O pântano do comércio pode ser horrendo, mas todos têm que passar por ele. E, mesmo quem não for capaz de atrair editores, não deve jamais desistir de aperfeiçoar sua obra em silêncio e invisibilidade, porque, no mínimo, viverá para o prazer que sua criação dá.
Chico Lopes é autor de O estranho no corredor (Editora 34).