O escritor e as presidiárias (1)

Um homem ou uma mulher viajam dez, quinze mil quilômetros e, no entanto, ele ou ela mal foram além dos limites de seu bairro
Thomas Pynchon, autor de “Arco-íris da gravidade”
01/11/2012

Um homem ou uma mulher viajam dez, quinze mil quilômetros e, no entanto, ele ou ela mal foram além dos limites de seu bairro.

Um homem ou uma mulher viajam quatro, cinco quilômetros e dessa vez ele ou ela foram longe, visitaram outro mundo.

Uma grade de paradoxos fraciona nosso espaço cultural.

Um paulistano ou uma paulistana da alta classe média, bom nível cultural, boa situação financeira, viajam a Paris ou a Berlim ou a Tóquio.

Em Paris ou Berlim ou Tóquio, ele ou ela freqüentam os locais culturais e gastronômicos freqüentados pela alta classe média francesa, alemã ou japonesa.

É como se ele ou ela não tivessem saído de seu bairro.

Um paulistano ou uma paulistana da alta classe média, bom nível cultural, boa situação financeira, visitam a Penitenciária Feminina de Santana.

Dessa vez ele ou ela foram longe, visitaram outro mundo.

São 13h30, é primavera. O interfone toca num apartamento de Perdizes, quase na fronteira com a Vila Madalena. O táxi acaba de chegar.

Sento no banco de trás. O taxista é jovem e sério.

Logo que eu entro, tiro da sacola de pano e espalho no banco o material que usarei na oficina: um CD com Paulo Autran lendo poemas de Drummond, um DVD com os melhores curtas-metragens do festival Anima Mundi, um exemplar de As cem melhores crônicas brasileiras, uma garrafa de água, uma barrinha de cereal, um lápis 4B, um apontador e um caderno de desenho.

Enquanto o táxi me leva da rua Cayowaá até a avenida General Ataliba Leonel, folheio a antologia organizada por Joaquim Ferreira dos Santos.

A Penitenciária Feminina de Santana fica quase ao lado da Biblioteca de São Paulo, todos sabem, construída no local da antiga Casa de Detenção do Carandiru.

O táxi me deixa em frente ao portão de entrada. São 13h50.

Em dez minutos estou diante de trinta detentas, de idades variadas. Minhas novas oficinandas.

Eu, alien; elas, ETs.

Tento parecer natural e relaxado. O melhor que consigo é parecer alguém tentando parecer natural e relaxado.

A consciência de minha pobreza — carência de vivência, de experiência, de inteligência emocional — me desconcerta.

Nunca estive num presídio antes. Nunca estive cara a cara com presidiários de verdade. O que sei eu sobre isso? O que sei eu sobre estar cercado de grades, carcereiros, gente fardada e armada, grossas paredes?

Todas as prisões e todos os prisioneiros que encontrei na vida eram imaginários: no cinema, na tevê, na literatura, no teatro.

O que as Recordações da casa dos mortos ou as Memórias do cárcere me ensinaram sobre essas trinta mulheres à minha frente? O que O beijo da mulher aranha, Carandiru, A tranca ou Prison break me ensinaram sobre a realidade?

Quase nada.

São mulheres feias. São mulheres pobres. Num lugar feio e pobre.

Mas a missão da arte e da literatura não é justamente embelezar e enriquecer espiritualmente as pessoas e os lugares feios e pobres?

Aleluia, que missão mais sublime, mais edificante: embelezar e enriquecer blablablá.

Não neste lugar, meu amigo, não com essas mulheres, minha amiga. Esqueça tudo o que você leu nos livros ou viu nos filmes. A realidade carcerária e o blablablá idealista não se misturam.

Quando cheguei à penitenciária, escutei gritos e palavrões. Engano. Era só uma revoada de papagaios impertinentes.

Após ter sido revistado e passar pelo detector de metal, fui conduzido à sala da funcionária que me acompanharia até a sala de aula, atrás das muitas grades.

Uma placa no saguão informava que o presídio foi projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo.

Logo reconheci sua beleza eclética, imponente. A mesma beleza de outros edifícios austeros que eu visito bastante: o Teatro Municipal, a Pinacoteca do Estado, a Casa das Rosas e o Mercado Municipal. Todos muito procurados pelas pessoas de bem com a vida.

Enquanto caminhávamos — portas gradeadas eram destrancadas, abertas, fechadas e trancadas —, a funcionária me explicou que o presídio tem três pavilhões, cada um com quatro andares.

São duas mil e seiscentas detentas e oitocentos e oitenta funcionários.

Agora estamos aqui, cara a cara.

Quando aceitei o convite pra coordenar uma curta oficina de criação literária numa penitenciária feminina — no total, três encontros —, eu sabia que o literário seria o elemento menos desejável.

Sabia que não poderia tratar as presidiárias da mesma maneira que trato meus oficinandos regulares, que conhecem minha obra. Estes vêm a mim espontaneamente, as detentas não.

As sutilezas da linguagem e do sistema literário ocidental, as extrapolações simbólicas de Gonçalo Tavares, Inês Lourenço, William Gibson e Thomas Pynchon, a teoria do poema, as funções da linguagem, a teoria do conto, tudo isso teria que ficar do lado de fora do presídio.

Trinta mulheres me olham, sentadinhas e quietas como boas alunas. Elas estão e não estão presentes.

Não vieram atrás de literatura, muito menos de criação literária. Vieram atrás da “remissão de um dia de pena a cada doze horas de freqüência escolar” (lei nº 12.433, de 29 de junho de 2011).

Tudo indica, então, que somos os protagonistas de um esquete de teatro. O escritor fará o papel de oficineiro e as detentas interpretarão o papel de oficinandas.

Se todo mundo desempenhar bem o seu papel, a encenação será um sucesso de público e crítica. Eu receberei o pró-labore, elas tirarão dez por bom comportamento.

Abrem-se as cortinas.

Eu me apresento, explico qual é o conceito de uma oficina de criação literária e peço a elas que também se apresentem. Não quero detalhes. De jeito nenhum. Não posso dar espaço a confissões dolorosas ou lamentos enfurecidos. Quero saber apenas o nome de cada uma e se gosta de ler e escrever, se tem um autor predileto, um livro que aprecia bastante.

Pouco antes, no caminho pra sala de aula, a funcionária me contou que boa parte das detentas foi condenada por tráfico de drogas.

Mas há também as condenadas por roubo ou estelionato.

Observando as oficinandas enquanto escrevem, fico pensando se há alguém condenada por homicídio, se matou o marido que a espancava e molestava a filha pequena.

Afasto rápido o pensamento. Continuo desenhando grades e cadeiras em meu caderno. Não interessa como essas mulheres vieram parar aqui.

Quero apenas que o exercício de escrita seja uma experiência prazerosa e criativa. Um momento fora do tempo carcerário.

Foi o que eu pedi a elas: divirtam-se.

A funcionária me explicou que nesta prisão menos da metade das presidiárias trabalham.

Não há emprego pra todas. A fila de espera é grande. Uma ocupação na oficina têxtil, ou na de costura, ou em qualquer outra, significa um salário mínimo por mês e a bendita remissão: três dias trabalhados diminuem um na pena.

Se você não tem trabalho, na prisão, o plano B é estudar.

Bem ou mal, as trinta mulheres à minha frente pertencem à elite da população carcerária. Estou ciente disso, do contrário não teria aceitado o convite.

Noto a hierarquia: entre elas há três ou quatro mais centradas, mais articuladas. São as monitoras.

Papagaios estridentes passam pela janela gradeada. Já é a décima vez que fazem isso. A sala de pé-direito duplo ecoa a algazarra.

Agora minhas oficinandas se revezam na leitura do que acabaram de escrever. Uns textos são irreverentes. Outros são sentimentais. Comentários começam a pipocar. Alguém ri gostoso.

Eu relaxo um pouco. Estão se divertindo.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho