O Coxo, o Tinhoso, o Cramunhão

Alguns conselhos para transformar um livro num best-seller
Paulo Coelho, autor de “O diário de um mago”
01/06/2011

Pela estridência do clamor geral, parece que um fantasma muito sem-vergonha anda rondando a alta cultura: o fantasma do best-seller. Uma assombração, uma alma penada. Pior: o próprio Satanás. Os leitores refinados e a crítica especializada — a acadêmica e a jornalística ­— detestam essa criatura das trevas. Não podem nem ver que já puxam o crucifixo, a garrafinha de água benta.

Confesso que essa ojeriza às vezes me deixa confuso. Todo best-seller é mesmo ruim? Vejamos, o que há em comum entre os romances Dom Quixote, O apanhador no campo de centeio, Diário de um mago e O código Da Vinci? Simples: o fato de terem vendido milhões de exemplares no mundo todo, apenas isso. Não são todos best-sellers? Hum, parece que não.

Mas afinal o que é um best-seller? Bem, eu pensava que era “um livro que é sucesso de vendas”. Então, pra mim, best-sellers eram Os lusíadas, Ulisses, Dom Casmurro e A rosa do povo. Esses e, é claro, os livros contemporâneos sobre qualquer assunto — anjos, vampiros, astrologia, etc. —, sem qualidades visíveis, que tão logo são lançados esgotam muitas e muitas edições.

Mas um amigo logo me alertou que havia um pequeno erro em meu raciocínio. Cervantes, Camões, Machado de Assis e outros da mesma estirpe “não são exatamente best-sellers”. Segundo ele, best-seller é um livro que é sucesso de vendas em um curto espaço de tempo.

Implícita nessa idéia está outra, de que o best-seller é um livro ruim, sem valor literário, um objeto de puro entretenimento. Na lista que meu amigo me apresentou ficaram de fora os clássicos da literatura. Entraram somente os romances de Dan Brown, a série Harry Potter (J. K. Rowling), a série Crepúsculo (Stephenie Meyer), a série Millennium (Stieg Larsson), os livros de Paulo Coelho e os de Stephen King.

Meu amigo me explicou que os editores e os livreiros criaram outra palavra para os clássicos. Eles são long-sellers: livros que vêm vendendo relativamente bem há décadas ou séculos e continuarão vendendo bem ainda por muito tempo.

Ok, paciência. Vamos deixar os long-sellers de lado.

Pensando apenas no romance, que parece mesmo ser o gênero predileto dos leitores, a grande pergunta que muita gente da cadeia produtiva do livro anda fazendo é: existe uma fórmula infalível para a feitura de um best-seller? Parece que sim. Alguns escritores e editores oferecem uma receita bastante simples para a criação de um romance campeão de vendas. É mais ou menos assim:

1. O romance precisa atender às exigências do mercado, ter o propósito de vender muito. Então, antes mesmo de começar a escrever, o autor precisa ter em mente esse propósito.

2. O romance tem que apresentar uma linguagem simples e acessível, que possa ser compreendida pelo maior número de pessoas. O narrador mais adequado ao romance best-seller é o narrador onisciente, aquele do folhetim do século 19.

3. O romance tem que ter um enredo complexo ou complicado, cheio de reviravoltas e surpresas. Perceberam? Linguagem simples e enredo complexo. Diferente da linguagem complexa e do enredo simples de uma Virginia Woolf e uma Clarice Lispector.

4. A trama tem que revelar um mundo estranho e excêntrico. O autor faz isso lançando mão do esoterismo, da magia, da fantasia. Ou, seguindo outro caminho, escrevendo sobre espionagem internacional, crises políticas, terrorismo, detetives, etc.

5. A trama tem que privilegiar os clichês e evitar os experimentalismos. Quem diz isso são os críticos mais malvadinhos, da academia e dos suplementos literários.

6. O romance pronto, é preciso agora uma vigorosa estratégia de marketing: boa exposição na mídia, nas livrarias, anúncios em jornais e revistas, aparições do autor na tevê, boa divulgação boca a boca, etc.

Bem, essa é a fórmula que alguns escritores e editores dão. Simples, simples. Mas todos nós sabemos que não é uma fórmula infalível. Afinal uma horda gigantesca de autores já seguiu essa receita e se deu muito mal.

Então, em nome do bom senso, gostaria de inserir mais um item nessa receita. Um ingrediente que, na minha opinião, é tão importante quanto os demais:

7. É preciso ter sorte. Sem uma ajudinha do acaso, da sorte, nenhum livro vira um campeão de vendas. E quem diz isso não sou só eu, não. No best-seller O andar do bêbado, do físico Leonard Mlodinow, há inúmeros exemplos que comprovam que o acaso é a força que define o sucesso ou o fracasso de quase tudo o que fazemos.

Pense num romance best-seller, qualquer romance best-seller. Além da obediência à receita acima, foram os eventos imprevisíveis que fizeram dele o sucesso instantâneo de público e de vendas. O acaso é um demônio brincalhão. Muitos exemplos interessantes de sucesso e fracasso na literatura, no cinema e na ciência vocês encontrarão no livro do Mlodinow.

A maioria dos editores acredita que um dos efeitos colaterais do best-seller é ajudar os livros que, sofisticados demais, não são e jamais serão best-sellers.

Afinal ter um ou vários sucessos de venda no catálogo acaba fortalecendo a editora e provocando uma expansão do próprio mercado livreiro. Essa expansão é importante por quê? Pra fazer frente à sedução implacável da televisão, do cinema, da internet, do videogame, etc.

Dizem os profissionais da área editorial que o lucro obtido com uma Danielle Steel permite ao editor publicar meia dúzia de Luiz Bras.

O livreiro raciocina da mesma maneira: os best-sellers garantem o público da livraria. Se dependesse apenas dos livros sem um grande apelo comercial, o livreiro estava frito. Vinte ou trinta títulos vendendo feito pãozinho quente permitem a ele manter em seu estoque centenas de títulos menos populares, mais sofisticados. Livros de filosofia, artes plásticas, culinária… De poetas e ficcionistas talentosos mas pouco conhecidos.

Muitas vezes — quem me contou isso foi um livreiro amigo meu — alguém que entra na livraria pra comprar o romance mais badalado e vendido do momento acaba levando outros livros menos comerciais, menos superficiais. Acontece com freqüência. “É por isso que o best-seller da editora A, ao trazer o leitor pra livraria, às vezes também beneficia as editoras B e C.”

(Parêntese necessário: o raciocínio acima é o mesmo que motivou a enquete do Rascunho anterior, sobre o Prêmio Nobel de Literatura. Eu particularmente não gosto nem desgosto dos prêmios literários. Não leio ou deixo de ler um autor só porque ele recebeu ou não o Jabuti, o Portugal Telecom, o Camões, etc. Mas não pude deixar de notar que o Nobel recebido pelo Saramago fez um bem danado a muitos autores portugueses vivos. De repente Portugal passou a ocupar um bom pedaço de terra na República Mundial das Letras Contemporâneas, da qual o Brasil continua de fora. Saramago premiado, os outros autores portugueses começaram a ser traduzido na França, na Inglaterra e até nos Estados Unidos. Por isso eu acredito que, assim que um de nossos escritores receber o merecido Nobel — não importa muito qual autor, se poeta ou ficcionista —, isso beneficiará vários outros.)

Mas talvez essa bonita equação não seja tão rigorosa assim. Já ouvi em muita mesa-redonda e em muita palestra que “o best-seller é uma escada importante na formação de leitores”. Segundo essa hipótese, o sujeito que nunca gostou muito de literatura começaria lendo Dan Brown e depois passaria para Italo Calvino. Lindo. Mas conheço dezenas de leitores que começaram com O código Da Vinci e não saíram dos degraus inferiores da escada. Continuam lá até hoje.

A vida não é mesmo simples, rs. Certas afirmações funcionam muito bem só no atacado. No varejo elas às vezes falham. Não dá pra continuar afirmando que “todo best-seller é ruim” depois de ler os romances de Jonathan Franzen, As correções e Liberdade. Ou, mudando para a não-ficção, o envolvente Uma breve história do tempo, do físico Stephen Hawking.

Porém, se os milhões de leitores que compraram esses livros realmente os leram, já é outra questão.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho