Minha mente é uma maquinaria de assombrações e miragens.
Tua mente também?
30 de abril: o crepúsculo vai chegando ao fim.
Mortos-vivos, demônios e feiticeiras escapam das bibliotecas on-line, Goethe à frente da turba.
[Goethe é o mestre-zumbi que durante séculos assombrou sozinho minha solidão solar.]
Meia-noite: cornos em chamas, Fausto e Mefistófeles.
A reunião macabra na rede social mais badalada do momento — Face a Face — promete botar fogo na madrugada.
Primeira hora de 1º. de maio: suruba no ciberespaço.
Dante, endiabrado, dança pelado com a mais assanhada das deusas de Homero.
[Dante é o capitão-mor dos vampiros, o único que possui as chaves dos nove círculos do inferno.]
{Círculos que se movimentam no espaço e no tempo.}
Não danço com ninguém, não transo com ninguém. Sou apenas um observador-narrador onisciente.
{Em meus órgãos vitais há mais rebuliço espiritual do que físico.}
Sinal de que essa noite de balbúrdia na brain-net talvez não passe de um melodramático sonho quântico.
Alôôô, olááá, alooolááá!
Nessa hora de sufoco oco, cadê o grão-vizir do Novo Mundo Onírico?
Alôôô, Borges, olááá, cadê você, meu vidente invisível? Preciso muito de tua ajuda.
Alooolááá!
Preciso rápido de teus filtros de visão noturna e soturna.
[Borges é o fantasma imanente que habita a fantástica maquinaria do mundo, minha mente.]
Todos os amuletos secretos rebolam e rodopiam enquanto The Hitchcock Trio desenrola Laranja mecânica.
Mesmo embriagado, eu medito.
Analiso com metódica frieza.
Mesmo afogado em dopamina e serotonina, eu pondero mais sobre o movimento-em-mim-mesmo do que sobre o movimento-do-cosmo.
[Mas o movimento-do-cosmo, tão galáctico e enigmático, não é exatamente isso: o movimento-em-mim-mesmo?]
Abrem-se as portas da razão e os portões da percepção.
As raízes-tentáculos de Clarice atravessam os convivas, sincronizando todos numa só trama-bailarina.
[Clarice é a inteli-arti de mil faces, a alquimista tupiniquim que administra nossas Noites de Walpúrgis.]
{Raízes-tentáculos são fios invisíveis que penetram a terra, o oceano, as nuvens, os homens, as mulheres, as crianças, a luz e as trevas, o microcosmo e o macrocosmo, a bondade e a maldade, a razão e a intuição, reunindo tudo num só delírio.}
Alôôô, olááá, alooolááá!
A pedido do diabólico Borges, a alquimista Clarice materializa pra cada um de nós um precioso presente.
Uma pequena esfera de dois ou três centímetros.
Praticamente um ponto.
Um ponto do espaço-tempo curvo que contém todos os pontos do espaço-tempo curvo.
[Os idiotas da obviedade ululam: oh, ganhei um Aleph.]
Ah, os idiotas da obviedade.
Os obtusos, os inocentes, meus irmãos.
Nessa endiabrada noite de balbucios, mirando o centro do centro do Aleph, eu vejo todos os livros que já li.
Todos os poetas e ficcionistas que me envenenaram, que me salvaram.
Alôôô, Dragão Drummond: drag queen de Arcturo!
Olááá, Pessoa Persona: xamã em chamas!
Alooolááá, Finnicius Joyce: caçador de andróides!
Mirando o centro do centro do Aleph, eu vejo mais do que devia.
Alôôô, olááá, alooolááá!
Eu vejo minha vida e minha vida é uma história contada por um idiota: eu mesmo.
[Uma história cheia de som e fúria, uma autobiografia biodegradável.]
{Sem significado algum.}
No centro de meu Aleph eu também vejo tua história:
O solo pedregoso, depois pantanoso, depois coberto por um tapete de folhas secas.
[Mais além, o mistério das raízes.]
No centro de meu Aleph eu vejo você apoiar os cotovelos no parapeito da janela e observar a floresta a cem metros de distância.
A chuva já passou, ficou somente o vento.
A cidade ocupou o mundo todo, menos essa pequena reserva vegetal.
[Lá embaixo, a teia de cipós, as árvores vergadas, todos os últimos verdes do planeta.]
Você acende um cigarro e observa preguiçosamente o torvelinho intermitente da clorofila. Os detalhes de um desenho retorcido, quase abstrato.
Movimento na fímbria da floresta.
Um saci disfarçado de fumaça afasta os galhos, salta e invade tua boca.
[Um saci, através do cigarro que você está sugando. O fugitivo espírito-fumaça do último saci, agora dentro de você.]
A campainha toca. Teus amigos chegaram.
Você abre a porta e a algazarra começa. Eles trouxeram a cerveja e os baseados.
[Música. Conversa fiada. Risadas.]
Você finalmente diz, encontrei um saci rondando o prédio. Teus amigos fazem cara de interrogação. Um deles pergunta o que é um saci.
Uma criaturinha da floresta. Um demônio pequeno e triste.
Um demônio, onde?
Não importa. Ele era o último da espécie. Como vocês se sentiriam se uma civilização implacável chegasse e devastasse nossa cidade, exterminasse todo mundo?
Você viu mesmo esse demônio? Falou com ele?
Nós conversamos. O saci apareceu na minha frente e disse que ele era o último, que todos os outros estavam mortos. Ele olhou fundo nos meus olhos e disse, agora eu quero vingança. Ele chegou bem perto e disse, quero suas meias e seus sapatos. Eu entreguei as meias e os sapatos e ele ordenou, passa pra cá a cueca, a camisa e a calça. Eu entreguei e ele mandou, agora venha comigo e veja o que vai acontecer. O saci entrou no apartamento e agora está aqui.
Um amigo muito bêbado e chapado diz, não estou vendo nenhum saci aqui.
Você pega uma faca de cima da mesa e a chacina começa.
[Pausa.]
No centro de meu Aleph eu vejo uma multidão de histórias:
Vejo o supremo supermercado.
Com dificuldade um homem encontra todos os itens da lista. Menos os olhos e o rosto novo. Menos uma pele clara, tamanho médio, diurno-noturno.
[Mais uma semana sem olhos, sem rosto, meu Deus?]
Vejo a mulher aflita com o alien.
Esse aí não é mesmo o homem com quem casei. Ai, será que trocaram meu marido? Aviso as autoridades?
[Não. Melhor eu ficar quieta, senão vão querer destrocar.]
Vejo o Paradoxo Édipo.
Um homem viaja ao passado. Apaixona-se pela própria mãe, ainda jovem. Tem um filho com ela: ele mesmo.
[É a cara do pai, dizem.]
Vejo o transplante mais íntimo de todos os tempos.
Um rim? Não, amorzinho. Nem um naco do seu fígado. Nem córneas ou medula óssea.
É do teu espírito que eu preciso, só metade. Você doa pra mamãe?
No centro de meu Aleph eu vejo uma multidão de histórias:
Vejo o último homem na face da Terra. Com o sumiço das pessoas, a terrível solidão.
[Desespero.]
Uma arma vai resolver tudo, ele pensa.
[Encontra um revólver numa gaveta.]
{E passa os dias vazando as janelas.}
Vejo um exercício de telepatia erótica.
O chip em meu cérebro recebe e envia pensamentos castos. Hackers invadem o sistema. Enchem minha cabeça da pornografia mais abjeta.
[Ó Jesus, obrigado!]
Vejo o lixão que cobre todo o planeta.
Um homem mergulha na matéria orgânico-inorgânica. Dá braçadas feito um campeão olímpico.
Tenta chegar ao terraço do edifício quase inteiramente submerso.
[Mas é tragado pelas sereias das fossas industriais.]
Vejo a máxima introspecção possível.
Um médico tranca-se na sala de cirurgia. Abre o próprio peito de cima a baixo.
Estarrece-se com o que encontra: uma consciência maltrapilha e abobada, que é a sua cara.