Ninil

Pessoas que escrevem se encontram com pessoas que escrevem; e os versos do poeta silencioso
01/08/2009

Noite. Inverno na avenida Paulista, na Casa das Rosas, no mundo todo. Primeiro encontro da oficina de criação literária. Olhos e ouvidos atentos, gargantas secas, ansiedades disfarçadas. Que estranho espaço-tempo. A fauna reunida não vem de um zoológico conhecido. Biografias muito diferentes, pulsões ordinárias e extraordinárias, medo e gozo comprimidos no peito quente, nas mãos frias. Por que as pessoas que escrevem procuram outras pessoas que escrevem? Pra se aquecer? Se esquecer?

A melhor pergunta é: por que as pessoas escrevem? Uma resposta plausível: “A literatura é sempre uma expedição à verdade”. Outra, também possível: “A literatura é uma defesa contra as ofensas da vida”. Kafka conversando com Cesare Pavese. A sala está cheia de ectoplasmas ilustres.

Todos eles têm algo a dizer. Todos parecem saber o que a literatura é. “Uma atividade em que se torna indispensável dar provas constantes de que se tem talento, para convencer pessoas que não têm nenhum” (Jules Renard). “Não é outra coisa além de um sonho dirigido” (Borges). O alarido cresce, ecoa na avenida, assustando os skatistas. “Em literatura, o meio mais seguro de se ter razão é estando morto” (Victor Hugo). “É com boas intenções e nobres sentimentos que a má literatura é feita” (Gide). “Os livros têm os mesmo inimigos que o homem: o fogo, a umidade, as traças e o tempo, e o seu próprio conteúdo” (Paul Valéry).

Foi numa oficina que eu conheci Ninil Gonçalves. Seu silêncio e seus poemas logo me chamaram a atenção. Pouco depois eu passei a freqüentar sua página na rede (http://blognilzit.blogspot.com), onde, sem grande alarde, ele vem publicando textos de alta qualidade e clarividência. Principalmente poemas.

Entre os cacos
Desatou de vez
o nó há muito enfraquecido.
Laço rompendo-se, derramando sobre os dias
um oceano de ninharias enumeradas,
um deserto de invariáveis tons,
afrouxando o abraço das correntes,
apagando cartas de contínuo redizer.
Rompeu o esfarrapado e carcomido cordão
acariciado pela cega lâmina da faca,
adiando o definitivo corte.
A lógica das pedras na construção da estrada
reverteu-se na destruição do espelho,
despedaçando o quase reflexo do outro
acostumado à mera distorção,
um esquecido retrato de algo
que se perdeu entre os cacos.

A comunidade literária ainda está se adaptando à internet e à realidade digital. Os leitores acostumados apenas com o papel impresso estão preocupados: o livro sobreviverá? Mas as gerações mais jovens não pensam muito nisso. Devagar o tempo vai remodelando as mentalidades. Ninguém controla o progresso técnico e tecnológico. Tudo muda, e os mais aptos vão se ajustando darwinianamente. Até mesmo a noção de que a literatura está apenas nos livros anda meio enfraquecida. Agora ela também está nas oficinas e nos blogues. No blogue do Ninil, com certeza.

Condução
Antes que eu me torne coisa alguma
dê-me o tempo que gastei em lugar algum
procurando aquilo que nunca quis
que nunca vi, nem sabia o que era.
Dê-me o passado que não vislumbrei
diante do construído ao meu redor,
esboço único do mundo calculado
implantado na complacência cega
caminhando aos contínuos solavancos
no mero formato cabível de locomoção.
Não me dê mais nada!
A folha puída e em branco que arranquei,
recoloquei-a com o necessário cuidado
como complemento insubstituível do ser,
inaugurando o vazio seguinte
ansioso por rabiscos e linhas indefinidas
faminto por descaminhos e trilhas
que preencham toda página.

Ninil é um espírito turbulento. Pessoalmente, tomando um café, conversando sobre teatro ou MPB, ele parece uma superfície serena e insondável. Um oceano. A música que ecoa na atmosfera é elegante e delicada. Mas é óbvio que criaturas faiscantes, divinas e monstruosas agitam as profundezas. Os órgãos internos, espezinhados, soltam sangue. Tormentas de natureza variada atormentam esse oceano.

Get up
a James Brown

O concreto aguardava ansioso}
os passos quebrados que o iluminariam.
Os muros exibiam suas novas cores
misturando-se à melodia das calçadas.
A rua oferece seu inebriante odor
ao corpo desacostumado à inércia,
subjugando os passos ao inevitável percurso
rumo ao fluxo de vida que explode
na insaciável necessidade de mover-se
entre o ritmo e a poesia.
Os corpos resistiam à tentação
de se lançarem de uma só vez na plenitude
conquistada sob o signo do movimento.
A rouquidão de um grito que irrompe selvagem
do fundo da garganta da alma
embebido no mais possante groove,
liberta os corpos da angústia estática
que os limita a agir na mera função
de corpos caminhantes sob a gravidade,
instaurando em forma de dança
a necessidade abstrata de locomoção
de um ser configurado sob o movimento
que constitui seu próprio tempo.
A música desaba sobre os corpos,
marionetes da abstração rítmica,
deflagrando o concretizado combate
entre o som e o movimento.
Todos os freios e todas as amarras invisíveis
sucumbem à necessidade de se instalarem
à pulsão crescente e nervosa que sacode o chão,
invadindo os corpos em sua singular liberdade,
criando uma multiplicidade de espasmos
suprindo os anseios primitivos de libertação,
mediante a possibilidade de elevação
que se configura sob o efeito da música.

De onde vem essa fala vibrante? Esse jorro de imagens dilaceradas? Os versos cavam túneis no corpo e trazem para a luz do dia as vísceras suplicantes. Todas as contradições são denunciadas, expurgadas. Todas as contradições. O bem e o mal, o belo e o feio, a inteligência e a selvageria administram o mundo. Essa é a única denúncia do nosso tempo. Essa é a quintessência da lucidez.

Efeitos especiais
O corpo ancorava solenemente na propícia escuridão.
Os ossos deslizavam confortavelmente silenciosos
no mínimo espaço suficientemente tranqüilo,
aguardando uma profusão de intermináveis inquietações
orquestradas no mágico e trepidante facho de luz,
pairando sobre as poucas e insistentes cabeças,
prestes a se catapultarem no mundo que aos poucos
se constrói sob o sólido valor do pensamento.
Transmutando-se do tranqüilo repouso muscular
ao início de involuntários e crescentes tremores
que brotam das extremidades do já transfigurado corpo,
envolto e sucumbido ao poder da imagem como reflexão.
O contorcer dos pés busca a estabilidade necessária
ante o crescente tumulto estabelecido no impassível corpo,
bombardeado pela invisibilidade de ruidosas notas
surgidas na imanência que brota da imagem.
O entrecruzar dos deslizantes e aflitos dedos,
inundados em sudorífero instante,
antecipam o gélido percurso do calafrio estomacal.
Os músculos retesando em linha infinita
fortalecem o apertado nó na garganta
multiplicando a salivação abundante.
Contínuas e aceleradas explosões sacodem
a ressonante e ritmada caixa do subjugado tórax,
perpassando a totalidade do espasmódico ser.
As imagens refletem na multiplicidade de tons
faiscantes e circulares na tempestuosa retina,
sugando avidamente o instante.
As pálpebras já não suportando o abarrotado dique
entregam-se à profunda e aguardada inundação,
encharcando todos os poros da face satisfeita.
O facho de luz vai se dissipando sob a claridade,
erguendo a carcaça que se refaz do incomensurável fluxo
de vida e inquietações lançadas sobre o ser,
que sai cambaleante pela rua, tentando se encontrar.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho