Morte e imortalidade

Mentes criativas aterrorizadas com a própria extinção pensam obsessivamente na eternidade
Ilustração: Tereza Yamashita
01/07/2010

Meu pai tem oitenta e dois anos e sofre de osteoporose. Durante o banho ele perdeu o equilíbrio e fraturou três costelas do lado esquerdo. Minha irmã telefonou, nervosa, contando o ocorrido: ela ouviu um grito e o encontrou estatelado no chão do banheiro. Foi muito difícil ajudá-lo a ficar em pé e deitar na cama. Um mês atrás, no supermercado, ele caiu e fraturou a omoplata direita (o fisioterapeuta vem uma vez por dia para ajudá-lo a recobrar os movimentos do braço). Dois anos atrás meu pai foi atropelado por um motoboy e fraturou o fêmur direito.

Logo depois da queda no banheiro, minha irmã telefonou ao ortopedista que operara a omoplata e o fêmur. As costelas são mais complicadas, parece que não dá pra operar. Não entendi bem por quê, mas foi o que o ortopedista disse a minha irmã. Também não dá pra engessar ou enfaixar, isso comprometeria a atividade respiratória. Meu pai foi mandado de volta pra casa, onde está agora, se recuperando. E a recuperação está sendo mesmo à base de remédios e paciência infinita. Quando minha irmã telefonou, contando a queda no banheiro, a ida à clínica e a volta pra casa (imaginávamos que nosso pai seria no mínimo internado), minha visão embaçou. Fiquei muito transtornado. Ele está voltando pra morrer em casa, foi a primeira coisa que pensei. Ainda ao telefone, entrei em pânico. Não conseguia parar de pensar: ele está voltando pra morrer em casa.

A primeira vez que tive consciência plena do que é a morte foi aos cinco ou seis anos. Fiquei perplexo. E apavorado. Junto com a consciência inteira da morte veio a maior solidão que um menino pode sentir. Até então eu vivia na mais absoluta e confortável ignorância. O mundo era vasto e hospitaleiro, prova de que havia um Grande Anfitrião, ou muitos, zelando por tudo. Mas isso começou a acabar quando a professora me entregou uma cartela de selos de uma campanha contra a tuberculose: “Pergunte aos seus pais se eles podem colaborar com a campanha”. Eu não sabia o que era isto: a tuberculose. Pedi a minha mãe que explicasse. Os selos eram bonitos, coloridos, e minha mãe explicou que a tuberculose é uma doença terrível que pode até matar.

Espera um pouco: matar? Minha mãe confirmou: matar. Eu não sabia que isso era possível na vida real: morrer. Eu sequer sabia direito o que era a vida real. Os bandidos morriam no cinema, na tevê e nas histórias em quadrinhos. Mas isso era parte da ação e da emoção do cinema, da tevê e das histórias em quadrinhos. Eu não era bandido e vivia no mundo real! Quando entendi que ao menos nesse ponto a vida real imita a ficção, gelei. Senti vertigem. Senti que a tuberculose estava em mim. Eu ia morrer. Impotência, injustiça, que piada horrível. Chorei muito. Eu não queria ter tuberculose. Senti medo e vergonha de ser assim, tão finito e covarde.

Não havia volta. A morte instalara-se definitivamente em minha vida. Mas não me tornei um tanatofóbico como Julian Barnes, que dedicou um livro inteiro ao tema da extinção. Nada a temer não é uma autobiografia, mas um grande apanhado de memórias e reflexões sobre o reverso da vida: a morte. Barnes começa tratando da morte dos avós e dos pais, e segue em frente, colecionando fatos e comentários jocosos, literários, filosóficos, científicos e religiosos sobre o assunto. Montaigne escreveu: “A morte é de fato o fim, no entanto não é a finalidade da vida”. O prosador britânico, aos fazer sessenta anos, começou a transformar em finalidade cotidiana a preocupação com o próprio fim.

“Nossa única defesa contra a morte — ou melhor, contra o perigo de não conseguir pensar em outra coisa — está na aquisição de preocupações de curto prazo que valham a pena.” Essa verdade bastante objetiva foi passada ao autor de Nada a temer por um de seus inúmeros amigos tanatofóbicos. Preocupações de curto prazo que valham a pena: Rachmaninov e Shostakovich compunham, Flaubert e Zola escreviam, Monet e Picasso pintavam, etc. Outros não conseguem essa bênção — uma preocupação não relacionada com a morte — e não param de pensar no próprio fim. Em Nada a temer o binômio morte e medo rendeu páginas muito interessantes, mas o binômio morte e remorso rendeu as páginas mais pungentes. Uma das melhores passagens do livro é a que revela a aguda impressão que o “luto autoflagelador” de Edmund Wilson, após a morte da segunda mulher, deixou em Julian Barnes.

Isaac Newton acreditava que a verdadeira filosofia nada mais é do que o estudo da morte. A verdadeira arte também, principalmente quando sai em defesa da vida. Kafka dizia: “Se estou condenado, não estou somente condenado à morte, mas também a defender-me até a morte”. A melhor defesa é a poíesis: a criação poética, artística. Mentes criativas aterrorizadas com a própria extinção pensam obsessivamente na imortalidade. Inventam deuses, heróis e super-heróis perenes: as doenças e o envelhecimento não os alcançam. Peter Pan, o eterno adolescente de J. M. Barrie, Dorian Gray, o egocêntrico libertino de Oscar Wilde, e Orlando, a protagonista masculina-feminina de Virginia Woolf, são os imortais mais cativantes da literatura recente.

Mas leio em revistas de divulgação científica que a imortalidade não existe apenas na mitologia, na arte e na literatura. Não é uma utopia impossível. Ela existe também na natureza. Criaturas como a Turritopsis dohrnii (uma espécie de água-viva), o Sebates aleutianus (um peixe conhecido como rockfish), a Emydoidea blandingii e a Chrysemys picta (duas espécies de tartaruga) vivem indefinidamente. Um ciclo de renovação perpétua mantém as células da Turritopsis em constante funcionamento. Já o Sebates, a Emydoidea e a Chrysemys apresentam um envelhecimento desprezível. Suas células permanecem sempre jovens. Se não forem gravemente feridos, esses animais vão vivendo…

Já faz algum tempo que o ser humano vem modificando o ser humano. Essa é uma de nossas características mais salientes: nunca estamos satisfeitos com o que somos. No início dos tempos, esse processo de modificação começou externamente, com as tatuagens tribais, os piercings, os adereços na cabeça, no nariz, nos lábios, no corpo todo. Recentemente, com a evolução da medicina, o interior do corpo foi invadido por próteses e dispositivos não orgânicos. Mais recentemente ainda, a última fortaleza da natureza — o cérebro — também começou a receber implantes. O ser humano vem modificando o ser humano na tentativa de vencer o envelhecimento e a morte. Criando substâncias que melhorem a atividade física e mental, eliminem as doenças e impeçam o envelhecimento das células do corpo. Criando órgãos artificiais, de material sintético ou orgânico, para substituir os defeituosos.

A arte e a literatura também irão se beneficiar muito com tudo isso. Audrey de Grey, geneticista da Universidade de Cambridge, afirmou que “em cinqüenta anos não vai mais existir definição para expectativa de vida, pois teremos um controle tão completo do envelhecimento que as pessoas viverão indefinidamente” (revista Superinteressante número 275). Ah, doutor Grey, que otimismo! E os miseráveis do planeta inteiro, meu amigo? E a massa humana maltratada deste mundo?! É mais do que óbvio que, quando os nano-robôs, as próteses neurológicas, os órgãos artificiais, as injeções de telomerase e de células-tronco estiverem estendendo a vida dos mais afortunados, os pobres continuarão envelhecendo e morrendo feito moscas. Pelo menos a arte e a literatura poderão se esbaldar com o novo capítulo da luta de classes: mortais versus imortais. Para muita gente Montaigne continuará fazendo sentido: “Todos os dias vão em direção à morte, o último finalmente chega a ela”.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho