Mais três provocações para excitar o fogo

Sobre preconceito, piratas e a pergunta de um milhão de dólares na literatura
Rubem Fonseca, autor de “O cobrador”.
01/04/2012

1.
Tempos atrás, um grupo de estudos da Universidade de Brasília, capitaneado pela professora Regina Dalcastagnè, desenvolveu uma pesquisa estatística intitulada Mapeamento de personagens do romance brasileiro: anos 1970, anos 1990.

A partir do catálogo das principais editoras de cada época (Civilização Brasileira e José Olympio para o período de 1965-1979 e Companhia das Letras, Record e Rocco para 1990-2004), o recenseamento constatou que o romance brasileiro é escrito majoritariamente por homens (72,7% dos autores) e sobre homens (62,1% dos personagens são do sexo masculino, proporção que sobe para 71,1% quando são isolados os protagonistas).

Além disso, os dados levantados pelo grupo de Dalcastagnè confirmam o que já era intuído por todos nós, leitores e autores. Refletindo nossa situação política e social, no romance brasileiro quase não há espaço pra certos grupos sociais específicos, as chamadas minorias. Quem são elas? Além da mulher, a criança, o velho, o índio, o negro, o gay, o favelado, o judeu, o árabe, o japonês, os deficientes, etc.

Apesar de a pesquisa coordenada pelo Centro de Estudos em Literatura Brasileira da UnB tratar apenas do romance, nossa intuição não vê qualquer problema em estender seu corolário para toda a ficção tupiniquim (incluindo contos, crônicas, novelas, peças de teatro, etc.). Tanto os escritores quanto os protagonistas de nossa ficção são hegemonicamente homens brancos, de classe média, europeizados.

Ficam as perguntas: que razões justificam a escassa presença das minorias na ficção brasileira? Por que essa persistência, em nosso imaginário, do universal masculino do tipo branco-remediado-europeu? Por que a experiência social e subjetiva do índio, do negro, do gay e de outras minorias tem dado à luz tão poucos protagonistas significativos e interessantes?

O preconceito na literatura manifesta-se de muitas maneiras, não deixando de fora nem mesmo as características estritamente textuais. Ao lado da questão racial, econômica ou sexual, há também a questão de gênero literário. É verdade, amigos, até mesmo os textos sofrem preconceito.

A noção de alta literatura não surgiu à toa. Ela foi parida e alimentada pelos especialistas justamente pra deixar bem claro que existe, na imensa base da pirâmide literária, a baixa literatura, também chamada de literatura de entretenimento. Esses mesmos especialistas — certos professores, críticos e jornalistas culturais — classificam enfaticamente, por exemplo, a literatura policial, as obras de ficção científica ou de fantasia como subliteratura.

Esse tipo de preconceito aristocrático chama-se textismo. Sua origem é muito, muito antiga. A primeira manifestação de textismo ocorreu na Idade Média, com os trovadores provençais de vanguarda, aqueles que praticavam o trobar clus ou trovar obscuro. Esses concretistas “avant la lettre” não suportavam a poesia popular. Eles praticavam uma arte difícil, experimental, hermética, justamente pra afastar o público menos refinado.

Como escreveu Arnold Hauser: “o trovar obscuro era uma forma de distinção social, um meio de impedir o acesso das classes inferiores e não-educadas aos prazeres estéticos desfrutados pelos níveis superiores da sociedade” (História social da arte e da literatura).

2.
Como viver de literatura? Essa é a pergunta de um milhão de dólares.

As estatísticas informam que só uma ínfima fração de todos os escritores em atividade no mundo consegue viver de literatura, de direitos autorais. A gigantesca maioria, pobrezinha, não consegue sequer passar perto disso.

A gigantesca maioria dos ficcionistas e poetas vive de outras atividades mais rentáveis. Que até podem ser atividades ligadas à literatura, como o magistério, o jornalismo, a produção de roteiros para a tevê e o cinema, a tradução e a atividade editorial, por exemplo. Ou coordenando oficinas de criação, participando de júris literários, organizando eventos e participando de feiras e festas literárias. Este é o meu caso.

Parece que para a pergunta como viver de literatura? há pelo menos duas respostas:

1. Tornando-se um mestre absoluto, um autor aclamado e premiado mundialmente, como José Saramago e Philip Roth. Então, basta escrever e publicar obras de inquestionável valor literário. Simples assim.

2. Atendendo aos anseios do grande deus Mercado, faminto de best-sellers. Produzindo romances para as massas. Mas, atenção, quem acha que escrever um best-seller é a coisa mais fácil do mundo está esfericamente enganado. A receita do best-seller ainda não foi descoberta. Muitos escritores tentaram e fracassaram.

O caminho mais seguro, na minha opinião, ainda é o da dupla jornada de trabalho, da vida dupla: ter uma profissão que pague as contas e possibilite também uma carreira literária.

Lembrem que Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes eram diplomatas. Manuel Bandeira era professor de língua portuguesa. Drummond era funcionário público. Nelson Rodrigues era jornalista. Moacyr Scliar era médico. Lygia Fagundes Telles foi procuradora do Estado. Rubem Fonseca foi delegado de polícia.

Eu sinceramente não sei o que é viver apenas de direitos autorais, pois nunca tive essa sorte. Nunca passei por essa experiência gloriosa.

Então, só posso compartilhar com vocês algo mais trivial. Só posso falar sobre a vantagem em ter outra profissão, uma que pague as contas, ou de viver de atividades periféricas.

A grande vantagem é uma só: a liberdade total na hora de escrever. É poder escrever quando eu bem quiser, sem compromisso, e o que eu bem quiser. É não ter que me preocupar com as exigências do mercado editorial na hora de escrever um poema, um conto ou um romance.

3.
Apesar da fiscalização, a cultura da fotocópia e do PDF continua enraizada nas universidades brasileiras.

Editores e escritores reclamam do prejuízo de 400 milhões de reais por ano com a pirataria. Segundo a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos, são quase dois bilhões de páginas copiadas anualmente sem autorização.

O livro é caro ou barato? Pirataria é feio ou bonito? Vamos aos fatos.

Piratas são traiçoeiros, sorrateiros? São. Piratas são corajosos, arrojados? Certamente. Piratas são trapaceiros, ladrões? Pode apostar. Piratas são generosos, democráticos? Claro que sim.

Não existe meio-termo: pra uns, piratas são maus, pra outros, são bons; pra uns, são criminosos ignóbeis, pra outros, são heróis charmosos. No mar, ora Barba Negra, ora Will Turner. Na terra, ora Jack, o Estripador, ora Robin Hood.

O músico, a gravadora, o escritor, a editora, o cineasta e o produtor que deixam de receber pelo trabalho intelectual realizado abominam a pirataria. O vasto público fodido e mal pago apóia a pirataria. A classe média, menos fodida e um pouco mais bem paga, também.

Todo mundo prefere a alta qualidade do original à baixa qualidade da cópia, mas nem todos podem pagar o alto preço do original.

A pergunta mais singela, mais inocente, que qualquer criança de seis anos faria, é a mais óbvia de todas: para conter a metástase da pirataria, por que a indústria não baixa drasticamente o preço do original?

Não estou recomendando que a indústria comece a trabalhar sem qualquer margem de lucro, por tempo indeterminado, na tentativa de asfixiar a pirataria. Isso seria suicídio: as empresas logo iriam à falência.

Mas o processo de barateamento pode muito bem ser em escalas, pra que a indústria tenha algum tempo para se adaptar. Se um CD, um DVD ou um livro não custassem mais do que dez reais, desconfio que o produto pirata deixaria de parecer tão interessante assim.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

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