Eu nasci antes do videocassete, do telefone sem fio, do fax e do CD. Antes, bem antes da queda do muro de Berlim. Antes da descida do homem na Lua. Eu nasci e cresci durante a ditadura militar. A grande novidade na minha pré-adolescência foi a tevê colorida, da qual eu raramente me afastava.
Anos depois meus primeiros contos foram escritos à mão, em letra de fôrma, nesses grandes cadernos de capa preta que eu tenho até hoje. Meu método de trabalho era parecido com o dos calígrafos da Idade Média. Eu trabalhava exaustivamente cada linha, cada parágrafo, cada conto, antes de datilografá-lo — aí o calígrafo dava lugar ao tipógrafo renascentista — nessa Lexikon 80 de dez quilos.
O processo todo levava semanas, às vezes meses. Escrever no caderno era maravilhoso, datilografar os contos era o inferno. Padre Francisco João de Azevedo sabia disso. Ele foi o paraibano que inventou, em meados do século 19, um dispositivo mecânico de escrita pioneiro no mundo: a máquina de escrever. Ou algo muito parecido com isso. É claro que, tempos depois, quem patenteou o invento foi um americano espertalhão: Christopher Latham Sholes.
Ah, datilografar! Os dedos doíam, os tipos ficavam sujos de tinta, várias letras saíam borradas, os erros precisavam ser disfarçados com corretivo branco e no final a página datilografada ficava cheia de remendos e imperfeições. Isso me deixava louco. Em nome da limpeza e da perfeição, eu me obrigava a datilografar a mesma página três ou quatro vezes, até que o resultado estivesse livre de manchas e remendos. Nessa época (por volta de 1990) o sonho de consumo de todo escritor pobre em início de carreira era uma máquina elétrica.
Na verdade, o sonho de consumo de todo escritor pobre em início de carreira era um computador. Mas na época essas máquinas mágicas custavam as mãos, os olhos e a alma. Sendo assim, a máquina elétrica já significava um grande progresso. Ela, a incrível, espantosa, magnífica, assustadora Praxis 20 veio no meu aniversário. Ou no Natal. Não lembro bem.
A Praxis 20 eliminou os cadernos de capa preta? De jeito nenhum. O prazer de escrever e reescrever neles era absoluto. E a fita de impressão da máquina elétrica não custava barato. Tampouco a incrível, espantosa, magnífica, assustadora fita corretiva de polietileno. Só depois de o conto estar perfeito no caderno eu me animava a datilografá-lo.
Os cadernos só viraram definitivamente coisa do passado um ano e meio depois, com a chegada do incrível, espantoso, magnífico, assustador LC II com oitenta megabytes de disco rígido, quatro de memória RAM e — novidade no mercado — monitor colorido! Só faltava falar e cozinhar. Fiquei encantado e aterrorizado, na hora eu vi que não estava preparado emocionalmente para esse alien norte-americano. Mesmo assim ele entrou em casa, se instalou, seduziu a família e não saiu mais. O velho mundo da pena de ganso, da máquina de escrever e do papel-carbono definhava, o novo mundo dos bits, do backup e da print triunfava.
Antigos hábitos custam a desaparecer. Eu continuava escrevendo nos cadernões e só depois que a versão definitiva do texto estava pronta eu a digitava. O computador era apenas para passar a limpo. Mas quem diz que existem versões definitivas neste mundo? Quem escreve sabe disso. Mesmo depois de publicado em livro o autor continuará revendo seu texto, cortando aqui, aumentando ali, mudando obsessivamente cada detalhe. Foi assim que os antigos contos datilografados também migraram para o vasto disco rígido do LC II. Foi assim que os pobres cadernos foram abandonados e os novos textos começaram a ser escritos diretamente no computador.
Hoje eu não sei mais escrever à mão. Desaprendi. Ficou penoso compor até mesmo um parágrafo curto, um bilhete, uma simples dedicatória. Hoje eu só me sinto à vontade trabalhando no processador de texto. Meus manuscritos são todos de computador. Que os deuses abençoem as mentes criativas que me libertaram das manchas e do corretivo, presenteando o mundo com o incrível, espantoso, magnífico, assustador Word e suas ferramentas de edição.
Então veio a internet e o hiperespaço. E com ela o e-mail, os sítios de busca e os de relacionamento, as revistas e as enciclopédias on-line, as livrarias e os sebos virtuais, os podcasts e os broadcasts, os jogos para infinitos jogadores. E a vasta e tumultuada rede de blogues. Sim, a incrível, espantosa, magnífica, assustadora blogosfera. Que lugar é esse, qual é a sua extensão, onde fica? Ninguém sabe ao certo. Uns dizem que a blogosfera está em toda parte, permeando tudo: pessoas e objetos. Feito o Tao, do taoísmo e do budismo. Ou o sopro de Deus, do judaísmo e do cristianismo. Outros dizem que, por ser um lugar imaginário — como o País das Maravilhas e a Terra do Nunca —, ela está apenas em nossa mente, nas camadas mais profundas da consciência. Ou do inconsciente.
Hoje a maior parte das pessoas que escrevem faz isso diretamente na internet, na página de um diário virtual, na janela estreita e infinita de seu blogue. Para quem escreve contos, crônicas, poemas, reportagens, ensaios, artigos, fofocas, delírios, devaneios, besteiras, os elementos mais sedutores num blogue são a liberdade e a velocidade. Adeus caderno de capa preta, adeus original datilografado ou digitado, adeus espera pela impressão e pela distribuição. Mal você digita o último ponto final, seu texto já é instantaneamente publicado. Sem passar pelo crivo de outras pessoas — estou pensando na figura do editor e na do censor, no caso dos países em que não vigora a liberdade de expressão — seu texto já pode ser lido pelo planeta inteiro. Daí essa explosão de textos em todos os idiomas. Daí a estranha, estranhíssima impressão de que, diferentemente do que aconteceu no passado, hoje tem mais gente escrevendo do que lendo.