Fim do papel, fim da poesia

Há fortes rumores de que a pilha de livros que nos cerca está com os dias contados. Será?
Ilustração: Tereza Yamashita
01/02/2010

Se você é do tipo que detesta mudanças, mesmo as menos radicais, já deve ter ficado furioso inúmeras vezes com o insistente boato, sempre repetido em coquetéis e rodas de amigos, de que o livro de papel está a caminho da extinção.

Bobagem. Não se irrite sem um bom motivo. Não dê muita bola para o zunzunzum. Esse boato está mal informado. A notícia completa é que não apenas o livro de papel está a caminho da extinção, o jornal e a revista também.

Chegaram o e-paper e o e-reader. Em dois anos — no máximo três — o mercado editorial brasileiro enfrentará uma crise do mesmo porte da que o mercado fonográfico está enfrentando no momento, com a pirataria.

Aproveite bem este exemplar do Rascunho. Trate-o com carinho. Você e eu pertencemos à última geração a conviver naturalmente, quase sem perceber, com as revistas, os jornais e os livros impressos em papel analógico, de celulose. Não, nada de soluços e lágrimas. Isso é pra ser festejado. Imagine se fosse possível conviver com os últimos dinossauros, pouco antes de sua extinção. Seria uma experiência fascinante.

Mas falar em morte e extinção talvez seja exagero. São palavras muito duras e categóricas. O que está para acontecer com o papel e o livro é uma modificação, um desenvolvimento. Como aconteceu com o vinil e o VHS ao se transformarem no CD e no DVD. Como aconteceu com o rádio ao se metamorfosear na televisão. Pra quem não sabe, o rádio antes da tevê era o único e fabuloso meio de informação e entretenimento de massa, tão poderoso quanto a internet e a tevê são hoje, juntas. Um milhão de americanos não entraram em pânico, em 1938, com a adaptação radiofônica de A guerra dos mundos, realizada por Orson Welles?

Transformações. Neste exato momento, com o Avatar de James Cameron, o cinema está consolidando a renovação do 3D (boa arma contra a pirataria). Em breve os filmes em duas dimensões vão parecer algo tão arcaico quanto o cinema mudo.

Filtro-da-verdade
Mas não foi sobre o fim do livro de papel que o poeta, romancista e matemático Jacques Roubaud escreveu no número de janeiro do Le Monde Diplomatique Brasil. Foi sobre um desaparecimento muito mais sério: o da poesia.

No século 21, agora solidamente estabelecido, a poesia continua a perder espaço. (…) Essa situação é uma conseqüência da quase inexistência econômica da poesia, pelo menos dessa que se escreve atualmente. A poesia não se vende e, portanto, não tem mais importância. A poesia não tem mais importância e, portanto, não se vende. É claro que esse gênero literário não é o único que perdeu fatias de mercado na cena cultural contemporânea. O romance, a literatura em geral e o próprio livro foram afetados. Mas, no caso da poesia, estamos diante de uma forma extrema de desaparecimento.

Será que Roubaud está mesmo certo? Até ler seu artigo, eu jamais havia imaginado que a poesia estivesse correndo risco de extinção. Que ela é o gênero literário menos apreciado por editores, distribuidores, livreiros e leitores, isso não é novidade. Nem lembro qual foi a última coletânea de poemas a aparecer numa lista de livros mais vendidos. Mas falar em total desaparecimento… Não seria um exagero?

Penso que o escritor francês está nos convidando a ver a situação da poesia de uma maneira menos complacente e paternalista. Façamos de conta que seu artigo é um filtro-da-verdade colocado diante de nossos olhos. Agora podemos ver a poesia na UTI, inconsciente, sobrevivendo artificialmente graças aos aparelhos hospitalares, e apenas graças a eles. O que seriam esses aparelhos? Os prêmios e as bolsas oficiais, as edições patrocinadas pelas secretarias de cultura, as compras do governo para as escolas e as bibliotecas públicas, e outras ações semelhantes. Todas artificiais, porque não pertencem ao horizonte de escolhas do grande público. Porque o grande público se queixa do hermetismo dos poetas:

Há quase um século, e com uma obstinação tocante, a responsabilidade por tal circunstância (o desaparecimento da poesia) é atribuída aos próprios poetas. Expõe-se uma série de acusações para explicar e justificar a desafeição comercial: os poetas contemporâneos são difíceis, elitistas, a poesia é uma atividade fora de moda e ultrapassada. Os poetas são narcisistas, não se dão conta do que realmente acontece no mundo, não intervêm para libertar reféns ou para lutar contra o terrorismo, não fazem diminuir a desigualdade social, não se mobilizam para salvar o planeta e não falam a mesma língua de todo mundo. Eis por que não os lemos. Eles mesmos são os culpados por isso.

Roubaud sabe que é inútil comentar ou tentar rebater tais acusações. Ele certamente conhece os argumentos de Benjamin e Adorno, entre outros, a favor da arte e da literatura herméticas, contra a diluição e a vulgarização popular e populista. Mas o ponto nevrálgico da questão não é mais esse. É a derrota dos vitoriosos.

Se há cem anos o programa modernista venceu a última e principal batalha contra a tradição, tornando-se senhor do século 20 e fazendo valer nos quatro cantos do mundo sua cartilha (abstração, hermetismo, subjetivismo, fragmentação), é certo que agora suas premissas enjoaram, perderam a graça para o grande público que, para ser fiel à verdade histórica, jamais as apreciaram plenamente.

Horror à mudança
Às vezes fico em dúvida se a morte é realmente o grande e insolúvel problema filosófico. Há momentos em que a mudança parece ser um problema muito mais espinhoso. Porém, como morte e mudança são fenômenos perpétuos e incontornáveis, na certa são a mesma coisa, com nomes diferentes.

O horror que o e-paper provoca na maioria dos leitores é o horror à mudança. Não somos senhores de nosso destino, e isso apavora. Graças a esse pavor, a morte do papel de celulose é negada o tempo todo, em toda parte. Ora, se você é do tipo que detesta mudanças, mesmo as menos radicais, repito o que disse antes: não se irrite nem se abale sem um bom motivo. Tente ver as coisas em perspectiva. A pequena mudança do papel analógico para o digital é mesmo mínima, se comparada, por exemplo, com a mudança provocada tempos atrás pela invenção da escrita.

Platão apresenta, no Fedro, um mito muito interessante a respeito da invenção da escrita pelo deus Thot, o equivalente egípcio de Prometeu. Na língua do antigo Egito, a expressão que designa a linguagem escrita significa literalmente a fala dos deuses. No diálogo platônico encontramos Thot discutindo sua invenção com o deus-rei Tamuz (também chamado Amon), que o censura com as seguintes palavras:

Essa invenção trará o esquecimento à alma dos homens porque eles deixarão de cultivar a memória. Confiarão apenas nos textos escritos e não se recordarão mais por si mesmos. O método que você inventou auxilia não a memória, mas a recordação. Você dará aos homens não a verdade, mas apenas a aparência da verdade. Eles ouvirão falar de muitas coisas e nada aprenderão. Parecerão grandes sábios, mas sem a instrução verdadeira de modo geral nada saberão. Serão uma companhia desagradável, demonstrando uma sabedoria imaginária em vez de uma sabedoria verdadeira. (Tradução de Marcello Giovanni, inédita)

Dramático, não? Apesar dos temores do deus-rei, o mundo não mergulhou no caos devido à invenção da escrita. Invenção que nos permitiu um milagre extra-somático: guardar fora do corpo um volume extraordinário de informação.

Em relação ao papel de celulose, há outra atenuante que precisa ser levada em conta: a etapa anterior do desenvolvimento de qualquer meio de reprodução ou de comunicação não desaparece totalmente da noite para o dia. A fotografia não acabou completamente com os retratos realizados a pincel. O vinil ainda não desapareceu. A máquina de escrever continua sendo usada em muitos cartórios e estabelecimentos públicos paulistas (juro, eu vi). O livro de papel também não desaparecerá tão cedo.

Inúmeras confrarias de colecionadores formadas por escritores, editores, críticos e diletantes continuarão se reunindo em torno dele. Novos títulos continuarão sendo editados em papel por editoras especializadas, para compradores especializados. Novos títulos requintados, para apreciadores requintados que não querem perder certas qualidades visuais, táteis e até olfativas: o delicioso cheiro de papel e tinta de imprensa. O livro-objeto — o livro-arte, com capa dura — não perderá sua majestade.

Em relação à tese do desaparecimento da poesia, eu posso dizer a mesma coisa: há atenuantes. Roubaud acerta no diagnóstico mas exagera no corolário.

A prosa veio pra ficar, disso não resta dúvida. E não pense que ela venceu essa disputa jogando limpo. Não mesmo. Confira A ascensão do romance, de Ian Watt. Os primeiros romancistas ingleses — Defoe, Richardson, Fielding — eram escritores de aluguel que escreviam por encomenda e recebiam por página. Questão óbvia: por que queimar os neurônios produzindo versos metrificados e rimados, se a prosa é muito mais fácil?

Havia tempo que Defoe seguia nesse rumo. No começo da carreira ele utilizou o meio vigente da sátira versificada, mas depois passou a dedicar-se quase exclusivamente à prosa. E essa prosa obviamente era fácil, prolixa, espontânea: qualidades bem adequadas ao estilo de seus romances e à maior compensação financeira por sua labuta. (Tradução de Hildegard Feist, Companhia das Letras)

Repito, a prosa chegou pra dominar. Mas a poesia, mesmo se por acaso vier a perder todo o apoio oficial, mesmo a mais hermética, continuará alimentando inúmeras confrarias de apreciadores formadas por poetas, editores-poetas, críticos-poetas e diletantes-poetas. Mais ou menos como já está acontecendo hoje: poetas escrevendo para poetas e sendo lidos apenas por poetas.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

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