Elogio do acaso

Numa disputa intelectual, a vaidade e o orgulho sempre foram tão úteis quanto a inteligência e a erudição
Ilustração: Tereza Yamashita
01/03/2010

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Simpatizo muito com os poetas — melhor dizendo, com os não-poetas — que procuraram a poesia bem longe da literatura e da arte: no cotidiano. Que cruzada poderia ser mais poética e legítima? Refiro-me aos não-poetas que, na Paris do entre-guerras, estavam sempre receptivos a mim: o acaso, o fortuito, o imprevisto. Eram errantes, erráticos, errados. Gostavam de andar a esmo, sem destino, à espera das surpresas que a metrópole lhes reservava, que eu lhes reservava. À espera das iluminações profanas, para usar a feliz expressão de Walter Benjamin.

Esses não-poetas andarilhos eram fascinados pelo aleatório e pelas infinitas manifestações do acaso objetivo (um sobrenome, enfim!), que, segundo Hegel, é “o lugar geométrico das coincidências”. Esses não-poetas atraíam e enfrentavam as coincidências, minhas oferendas. Gostavam de passear pelos objetos das galerias, das passagens e do Mercado das Pulgas. Pelo labirinto dos sonhos e do automatismo verbal. Por que não-poetas? Porque eram surrealistas e abominavam a instituição literária e a artística. Detestavam as escolas literárias e os escritores profissionais. Pensando bem, talvez não-poetas sejam todos os outros, menos eles.

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Seis amigos que não se vêem há anos, escritores quarentões de vários pontos do sudeste — dois contistas paulistas, três poetas cariocas e um romancista mineiro —, encontram-se no América e durante o jantar põem em dia a conversa. É óbvio que muito antes da sobremesa os seis já estão amaldiçoando nosso volúvel mercado editorial. E destrinchando o sucesso ou o fracasso — quase sempre o fracasso — do último título publicado não só por eles, individualmente, mas também por todos os autores brasileiros que não estão por perto.

O espanto sincero e indignado permeia cada comentário. Como é possível que o romance (preencha este espaço com o título que julgar mais adequado) esteja fazendo tanto sucesso e o romance (preencha este espaço com o título que julgar mais adequado) não tenha sido sequer finalista do Prêmio Portugal Telecom e do Jabuti?

Confesso que esse espanto ingênuo e inocente sempre me desconcerta. Ele nasce de uma interpretação errada da dinâmica social. Escritores, que em geral demonstram uma compreensão arguta do comportamento humano, costumam ser muito ignorantes quanto às leis imperiosas da estatística e da aleatoriedade. Minhas leis.

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Desde que foi descoberto por Robert Brown, em 1827, e explicado consistentemente por Einstein, em 1905, o movimento browniano — o movimento aleatório das moléculas num fluido — tem sido usado com freqüência, em toda parte, como uma pertinente metáfora para o movimento dos indivíduos nas sociedades humanas.

Por exemplo, de que os jovens autores ainda inéditos e desconhecidos precisam pra se tornar um autor editado e bem-sucedido? Se você fosse um escritor premiado com o Nobel, o que diria? Essa cena é, ao menos pra mim, bastante familiar. Presenciei muitas vezes, assistindo a mesas-redondas e a palestras, um jornalista ou um curioso (um jovem autor ainda inédito e desconhecido?) perguntar aos autores veteranos de que os jovens autores ainda inéditos e desconhecidos precisavam pra se tornar um autor editado e bem-sucedido. A melhor resposta que ouvi até hoje foi: “Talento, dedicação e sorte, muita sorte”.

Igual ao autor dessa resposta (será que foi o Millôr?), também não vejo na palavra sorte nada de mágico ou sobrenatural. Ele e eu não estamos apoiando certas superstições. A estatística não deixaria. Minhas leis não deixariam.

Estamos sendo bastante racionais. Os filósofos, os matemáticos e os físicos de hoje já sabem que o acaso — o aleatório, sempre eu — determina profundamente a vida humana, os projetos humanos. O sucesso e o fracasso em qualquer área estão sujeitos às leis da probabilidade, é o que afirma O andar do bêbado, best-seller do físico norte-americano Leonard Mlodinow. Um best-seller sobre mim, enfim.

Foram os eventos imprevisíveis, mais do que os previsíveis, que fizeram de obras como Crime e castigo, A metamorfose e Cem anos de solidão, e qualquer outro título bem-sucedido que lhe vier à mente (se preferir o sucesso comercial, basta citar a série protagonizada por Harry Potter), o sucesso de público e de crítica que são até hoje.

A musa soprou talento em Dostoievski, Kafka e García Márquez? Claro que sim. A determinação e a dedicação à literatura foram constantes na vida de cada um deles? Afirmativo, eu estava lá, acompanhando tudo de perto. Mas também foram constantes na vida de muitos outros autores talentosos cujos livros desapareceram no vácuo do esquecimento, ou jamais vieram a ser publicados. Autores e livros esquecidos, esgotados, ou nunca conhecidos para além de um restrito círculo de amizades, porque, afinal, quem se interessa pelos azarados? Ninguém. Na sociedade humana as pessoas aprendem cedo a idolatrar apenas os vitoriosos.

A visão determinística do mercado, errada mas aceita pelo senso comum, afirma que o sucesso é governado principalmente pelas qualidades intrínsecas da pessoa e do produto. Já a visão não-determinística — penso de novo nos filósofos, nos matemáticos e nos físicos de hoje — afirma que o sucesso é governado por uma conspiração de fatores pequenos e aleatórios, isto é, pelo acaso, pela sorte. Por mim. É claro que o talento, a persistência e certo carisma social aumentam as probabilidades de sucesso de qualquer escritor, mas não são a garantia de vitória. “Com sorte você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua”, disse Nelson Rodrigues, num lampejo de não-determinismo. Nelson e eu sempre nos demos bem.

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A sorte e os movimentos brownianos na sociedade, por estarem intimamente conectados a mim — ao acaso, que não tem nada a ver com o caos, muito pelo contrário —, também conectam este breve, digamos, auto-elogio — estou pensando agora no célebre Elogio da loucura, outro longo sucesso de público e crítica — à deambulação dos surrealistas, oito décadas atrás, e à conversação no América, na semana passada.

A visão não-determinística do mercado foi testada em laboratório, por pesquisadores frios e objetivos, e se saiu muito bem. O resultado de todos os testes foi o óbvio ululante (obrigado, Nelson): por aí, em toda parte, há muitos livros, pinturas, filmes, CDs, escritores, pintores, atores e músicos de altíssima qualidade, porém desconhecidos, e o que fará com que em cada área um deles se destaque, apenas um, será, em grande parte, a conspiração de fatores pequenos e aleatórios de que falei. O encontro imprevisto, ou até então impossível, com um editor ou marchand ou um produtor. Um prêmio (quase) inalcançável. Uma tragédia pessoal, como a morte prematura (Mozart), a tuberculose (Kafka), a loucura (Van Gogh) ou o suicídio (Maiakovski). O acaso. Eu.

Você ficará assombrado ao saber que Bill Gates não é melhor do que a dúzia e meia de outros Bill Gates da informática que surgiram nos Estados Unidos na década de 1980. Está provado cientificamente. Ele é apenas o Bill Gates que teve mais sorte. É só conferir no elogio do acaso de meu amigo, Mlodinow.

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Muitos autores me confessaram que, cedo, na adolescência, peregrinaram para a terra santa da literatura apenas pra fugir da hipocrisia e do cinismo familiar e social, espécie de cativeiro egípcio sem faraó. Não suportavam a superficialidade, a burrice e a falta de discernimento dos pais, dos irmãos, dos avós, dos tios e dos vizinhos. A boçalidade dos colegas da escola também provocava náuseas. Correram para os livros e se fecharam neles.

Mais tarde começaram a escrever. Imaginavam a sociedade dos escritores como uma esfera elevada, distante da mesquinhez geral. Imaginavam os poetas, os ficcionistas, os filósofos como homens plenos, generosos, sábios. Criaturas que souberam controlar, por meio da reflexão refinada, os impulsos mais primitivos, os vícios que fazem dos obtusos, obtusos.

O fato é que os escritores são humanos, demasiado humanos, e como qualquer primata, evoluído ou não, são seres geneticamente agressivos obrigados a lutar em duas frentes: para estabelecer os direitos territoriais em determinada região e para estabelecer o domínio numa hierarquia social (O macaco nu, Desmond Morris). Eu sei, essa é a visão determinística do Homo sapiens. Às vezes, diante de tanta estultícia via satélite, institucionalizada, é difícil evitá-la. Confesse, você consegue continuar acreditando em livre-arbítrio, depois de assistir às macaquices automatizadas que explodem nos reality shows?

Em qualquer situação em que me vejo envolvido — num cassino, na bolsa de valores ou na atividade literária — o segredo é aumentar, sempre que possível, as probabilidades de sucesso. Isso vale para os sem talento e para os talentosos. Então, não pense que seu autor predileto jamais cometeu um gesto reprovável, nunca trapaceou ou jogou sujo para ver seus livros publicados, apreciados e até premiados. Numa disputa intelectual, a vaidade e o orgulho sempre foram tão úteis quanto a inteligência e a erudição.

Proust desejava fama, prêmios e sucesso comercial, por isso pediu ajuda, sem pudor algum, a todas as pessoas influentes que conhecia, para promover sua obra. Guimarães Rosa também escrevia aos amigos, pedindo resenhas. Neruda usou todas as armas e artimanhas lícitas e ilícitas para manter o título de Maior Poeta das Américas e, mais tarde, para ganhar o Nobel. Alejo Carpentier era outro que não se cansava da politicagem: bajulava Fidel (García Márquez bajula até hoje) e chegou a dar palestras na Suécia, também de olho no Prêmio. Aqui, Fernando Sabino não assinou a biografia da ministra Zélia Cardoso de Mello, a maior gafe literária do final do século passado? Até mesmo entre os requintados surrealistas, quantas disputas encarniçadas não foram travadas, por poder e hegemonia?

À socapa ou não, também na esfera literária todas as regras de ética e etiqueta são regularmente quebradas. Os fins justificam os meios.

É claro que existem artimanhas e artimanhas. Há a adulação protocolar do candidato à Academia Brasileira de Letras em campanha, de um lado, e a fedentina da relação de Heidegger e Hitler, do outro. E entre a primeira e a segunda se esparrama toda uma gama de possibilidades. Mas não vamos falar sobre os graus ou os degraus da ética e da integridade. Não sou juiz. Nem jurado nem advogado nem promotor. Sou apenas uma testemunha da História. Quem quiser atirar a primeira pedra, antes terá que provar que jamais pecou.

Falando diretamente para os jovens autores ainda inéditos e desconhecidos, olhos nos olhos: “Se você quiser ser bem-sucedido, duplique sua taxa de fracassos”, sugeriu Thomas Watson, um pioneiro da IBM. Faz sentido. Aumentar as possibilidades de sucesso significa jogar bastante, incansavelmente, sem desistir. E perder muito.

No final de seu livro, Mlodinow cita Thomas Edson: “Muitos dos fracassos da vida ocorrem com pessoas que não perceberam o quão perto estavam do sucesso no momento em que desistiram”. E lembra o caso de John Kennedy Toole, que, depois de ser rejeitado muitas vezes, perdeu a esperança de ver seu romance publicado e cometeu suicídio. Porém sua mãe perseverou e onze anos depois Uma confraria de tolos foi finalmente publicado, ganhou o Pulitzer de ficção e vendeu quase dois milhões de exemplares.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

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