Ego & alter egos

Messias, meu amigo, você está certíssimo quando reclama que Octavio Paz cometeu uma grande injustiça ao afirmar, em seu famoso ensaio sobre Fernando Pessoa, que “os poetas não têm biografia, sua obra é sua biografia”.
01/09/2014

Messias, meu amigo, você está certíssimo quando reclama que Octavio Paz cometeu uma grande injustiça ao afirmar, em seu famoso ensaio sobre Fernando Pessoa, que “os poetas não têm biografia, sua obra é sua biografia”.

Concordo com você.

Essa verdade irrefutável — sua obra é sua biografia — não diz respeito somente aos poetas. Ela abrange todas as esferas da criação literária & artística.

O planeta é muito curioso, Messias, as pessoas têm fome de anedotas & fofocas, biografias & autobiografias autorizadas ou não.

Mas você e eu sabemos que esse gênero pretensamente factual & documental não difere muito da boa ficção.

Todo biógrafo tem algo do volátil Jack Kerouac. Todo autobiógrafo é tão volúvel quanto o fantasmagórico Bras Cubas ou o patafísico Alejandro Jodorowsky.

Você não está exagerando quando afirma que a biografia e a autobiografia de hoje substituíram, no imaginário popular, o folhetim e o romance realista do século 19.

Pero, hombre, tua proposta de que escritores, músicos, cineastas — enfim, todos os aloprados que trabalham com a criação literária & artística — fujam do lugar-comum e criem sua própria biografia, essa proposta é radical demais.

Eu sei que uma biografia imaginária é sempre muito mais estimulante & provocativa que uma enfadonha biografia tradicional.

Também sei que o trabalho literário & artístico é realizado por indivíduos que não se sentem muito confortáveis com as formalidades sociais & institucionais.

Mas abrir mão da conveniente noção de verdade, tão apreciada pelos consumidores, tão valorizada pelo mercado e seus mercadores?!

Você só pode estar brincando, Messias.

Pense na orelha dos livros, meu amigo, pense nessas notas biográficas que figuram na orelha direita dos romances, das coletâneas de contos ou de poemas.

O que acontecerá com essas notas biográficas cheias de fatos & boatos verdadeiros? Cheias de medalhas & condecorações verdadeiras?

Eu sei que romancistas, contistas & poetas são um tipo especial de escritor. Falando sem eufemismo: um tipo fora do prumo.

Mas os fiscais do mercado editorial não vão permitir tamanho desatino. Os agentes da USP e da ABL não vão permitir tamanha porra-louquice.

Messias, você sabe, eu sei, a torcida brasuca sabe que a fantasia literária não pode fugir para a sociedade.

A fantasia literária precisa ficar bem presa, muito bem presa no miolo dos livros.

Imagine só o rebuliço se os autores começarem a trocar o nome e a inventar a própria nota biográfica. Pior: imagine só se os autores começarem a se desdobrar em múltiplas personas!

Pare de resmungar, Messias. Respire. Me escute.

Eu sei, você sabe, a torcida brasuca sabe que a melhor literatura e a melhor arte dos últimos cem anos tratam justamente da fragmentação do indivíduo.

O equilíbrio político & social não aceita indivíduos criativamente divididos.

Nossa sociedade exige indivíduos individualizados. Um nome, um RG, um CPF, uma só identidade.

Messias, querido, você sabe muito bem o que acontece com o autor que não consegue domesticar o impulso divisional & divisionista.

Virginia Woolf afogou esse impulso, Hemingway estourou seu centro nervoso.

Stefan Zweig drogou o descontrole.

David Foster Wallace enforcou sua respiração.

Posso parar ou quer que eu fale também de Sylvia Plath, Pedro Nava & Ana Cristina Cesar?

Nos obituários a palavra depressão aparece com frequência. Mas depois de cinco chopes você sempre repete que na raiz da depressão está a opressão racionalista & capitalista da liberdade criativa.

É imperativo, amigo, que o escritor mantenha suas múltiplas personas enjauladas nos limites estabelecidos.

Não preciso repetir: Pessoa foi original, concordo, mas também foi uma inconveniente exceção à regra. Ser plural feito o universo? Nãããooo. Nada de ficar espalhando Pessoas nos cinco continentes, ok?

Que será do pobre leitor, se romancistas, contistas & poetas começarem a deixar transbordar para o mundo empírico o delírio?

Não estou falando em mudança de sexo. Estou falando em multiplicação de sexos.

De manhã o sujeito é homem, à tarde é mulher e à noite é o meio-termo ou o dobro do inverso de todas as possibilidades.

Messias, que será do indigente professor de Letras se os autores pararem de nascer em lugares empíricos — sempre tão monótonos, eu sei — e começarem a nascer em lugares imaginários?

Semana passada você me emprestou o dicionário do Manguel e do Guadalupi. Estou folheando.

Nascer em Tubiacanga, capital de Pasárgada, seria maravilhoso, eu concordo. Ou em Mahagonny, maior cidade da Ilha do Dia Anterior.

Ou em Xanadu, capital de Grande Garabagne, e durante toda a infância morar a cem metros do fabuloso palácio de verão de Kubla Khan.

Não, seu maluco sedutor. Afaste de mim essa vontade.

Essa tentação, se realizada, poria em risco o delicado equilíbrio do jogo. Ficção é ficção, nada de libertar os outros que há em cada um de nós, imaginários ou não.

Que será do mal-amado crítico, se romancistas, contistas & poetas começarem a trocar as medalhas & os diplomas empíricos — sempre tão empíricos, eu sei — por similares imaginários?

Então teremos professores livre-docentes de literatura xamânica na Universidade de Macondo (Unimac) & doutorandos em transmutação alquímica pela Universidade Imperial de Utopia.

Que benefício esse cosplay permanente trará a nossa vidinha tão pacata? Não entendo tua implicância com a inércia, Messias.

Em vez de participarem da Flip os autores participarão da Flik? Festa Literária de Kadath, a cidade onírica inventada por Lovecraft?

Em vez de ambicionar o nobre Nobel os autores competirão pelo lépido Lebon? Essa é a mais alta láurea atribuída a um escritor, no especular & espetacular mundo dentro do espelho?

Messias, has perdido completamente el juicio.

Admiro muito você, teus rompantes subversivos são divertidos, mas sinceramente, meu amigo, sorte nossa que os agentes da ordem e do progresso jamais permitirão essa insanidade. Eles são minúsculos, eu sei, mas são numerosos.

Ficção & fantasia, somente DENTRO do livro, ok? Devidamente guarnecidas & apaziguadas por zelosas sentinelas: a página de créditos e o colofão.

Na capa, na quarta capa, nas orelhas, na lombada, nada de anarquia, certo?

Você sabe que o equilíbrio do universo depende disso.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho