Dois romances sobre a vida incomum

Obras de Fábio Fernandes e Roberto de Sousa Causo movimentam a cena literária underground
01/01/2010

Na superfície do mercado editorial, a prosa de ficção brasileira segue sem grandes emoções, desdobrando-se na confortável velocidade de cruzeiro. Nas últimas semanas o que surgiu de mais ou menos interessante? Vamos ver… Uma nova coletânea de contos de Dalton Trevisan. Um novo romance de Rubem Fonseca. Um novo romance de Luis Fernando Verissimo. Um novo romance de João Ubaldo Ribeiro. Enfim, novos livros sobre a vida comum.

Para nossa desgraça, o adjetivo novo é usado aqui em seu sentido menos arrebatador: “que apareceu recentemente”. Sinto muito. Bem que eu preferia o sentido mais empolgante: “que indica originalidade e substitui algo ultrapassado”. Mas, esperem, não vamos desanimar… Nesse mesmo período, no subterrâneo do mercado editorial, lá onde os holofotes da grande imprensa raramente chegam, a agitação foi proporcionalmente bem maior.

Tivemos muitas coletâneas e antologias movimentando a cena literária underground. E agora temos um novo romance de Fábio Fernandes, pela Tarja Editorial. E um novo romance de Roberto de Sousa Causo, pela editora Devir.

Inteligências construídas
A espinha dorsal de Os dias da peste, do carioca Fábio Fernandes, é a alta tecnologia. Seu protagonista pode até ser de carne e osso, mas é a informática que desempenha o principal papel na trama. A informática e suas infinitas conexões digitais, neurológicas e espirituais, potencializando nossa capacidade cognitiva, reformulando insistentes questões epistemológicas.

De acordo com a introdução, estamos no ano 2109 e os principais fatos narrados pertencem ao passado. O romance está divido em três partes: um diário híbrido caderno-web mantido em 2010, um blogue mantido em 2013 e uma série de podcasts gravados em 2016. As três partes revelam os pormenores de uma transição inevitável, mas traumática, na história dos seres humanos, posteriormente chamada de Convergência Neurodigital.

Novamente de acordo com a divertida introdução, o que o leitor tem nas mãos é um fac-símile de um artefato mais do que obsoleto — um livro de papel —, mimo oferecido pelo Museu Líquido de Copacabana, em atividade no Rio de Janeiro do século 22. Algumas dicas importantes vêm em seguida. Por exemplo: textos impressos em papel não contêm links nem janela para comentários, e para virar as páginas é necessário usar a ponta dos dedos.

São livros dentro do livro, vazados em linguagem pop. Os três antigos diários foram mantidos por Artur Mattos, professor universitário e técnico de computadores mal-humorado e solitário, vivendo na Cidade Maravilhosa suja, quente e caótica de nossa época. Certa noite Artur é chamado para atender um caso urgente e inquietante: a birra de um computador que começou a apresentar um comportamento anômalo muito parecido com a autoconsciência. A partir daí multiplicam-se os bugs e os chamados de nível três — o nível mais sério —, configurando uma estranha e imprevista crise global.

Os computadores de um McDonald’s passam a conversar uns com os outros, sem que haja alguém nos teclados. Os computadores da empresa para a qual Artur trabalha também ganham autonomia e se rebelam, enviando mensagens terroristas. O computador de um neurocirurgião apresenta a síndrome de Tourette. Já estamos nos casos de nível quatro, todos bastante graves, mas sempre com um toque de irreverência. Esses são os primeiros dias da pandemia tecnológica que mudará a face do planeta.

“E se um dia fosse necessário nos afastarmos de todo o conforto tecnológico que nos cerca? Se precisássemos nos desconectar de toda a praticidade da evolução digital? Caso sua vida, como você a conhece hoje, dependesse do total afastamento da informação, o que você faria?” Essas são as questões colocadas pelo Despertar presenciado e assimilado por Artur.

Além de ficcionista, Fábio Fernandes é professor universitário, jornalista e tradutor. É dele a versão brasileira de clássicos como Neuromancer, Laranja mecânica e Fundação. Faz tempo que Fábio vem pesquisando e escrevendo sobre cibercultura, mídia digital e redes sociais, e seu romance beneficiou-se dessa pesquisa. De duas maneiras: informando e divertindo. Informando: imbricada na trama há uma série de apontamentos e diálogos que trazem para o leitor os momentos e os conceitos mais significativos da história da informatização. Divertindo: as muitas notas de rodapé, inseridas por um etimologista do ano 2109, explicam — desajeitadamente, como na revista Mad — as gírias de nosso tempo.

Atividade paranormal
Anjo de dor é o primeiro romance escrito pelo paulista Roberto de Sousa Causo. Inédito até há pouco tempo, sua primeira versão é de 1990, quando o autor contava vinte e cinco anos, a mesma idade do protagonista, Ricardo Conte. Outras coincidências planejadas aproximam a narrativa e a biografia do romancista, entre elas o espaço físico e emocional onde a trama se desenrola: Sumaré, cidade do interior paulista onde Causo morou.

Quem passou a infância e a adolescência numa cidade pequena sabe que nesses lugares a melancolia e o tédio apresentam certos atributos muito mais perversos do que a melancolia e o tédio dos grandes centros urbanos. Acredite em mim. O sobrenatural manifesta-se com mais intensidade nas pequenas cidades, nas mentalidades mais provincianas.

Também esse romance está dividido em três partes: Luzes vermelhas, Milionário tatuado e Asilo de fantasmas. Um prólogo e um epílogo completam o conjunto. No prólogo, Ricardo Conte conhece Sheila Fernandes. Ele, sujeito errante e inquieto, teve muitos outros empregos e agora trabalha como barman na Flick. Ela, vinda de São Paulo, é a nova cantora da boate. O primeiro contato entre os dois gera atrito e faíscas. Estranham-se. Mal percebem que está tendo início uma dolorosa forma de paixão. E uma inesperada forma de maldição, atraída talvez pelo que tentam esconder um do outro.

A violência torna-se rapidamente o modo mais lascivo de comunicação entre Ricardo e Sheila. Ele, durante uma discussão com a cantora, perde a cabeça e a espanca. Os fatos se precipitam. A psique de ambos é o ringue em que dois impulsos básicos, mas opostos, tentam sufocar o oponente: o bem e o mal disputam. Em busca do saudável equilíbrio, Ricardo se afasta. Ele foge da aura selvagem e obscena que lhe causa tanta repulsa. E pinta um quadro (igual ao autor, seu protagonista também desenha e pinta). Ricardo executa o retrato minucioso de uma mulher muito parecida com Sheila. Na verdade, de uma Sheila melhorada, perfeita, pura. Só assim poderá aceitá-la. Porém a figura bidimensional ganha vida e o horror tem início. Logo outros espectros surgem, misturando-se com alguns canalhas do submundo da prostituição. Espectros enigmáticos, como o Anjo de Dor.

Além de ficcionista, Roberto de Sousa Causo é jornalista e tradutor. É dele a versão brasileira do premiado romance de Orson Scott Card, Orador dos mortos. Causo é um dos poucos especialistas brasileiros em ficção científica, fantasia e horror, e esse é justamente o título de seu estudo sobre o assunto: Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: de 1875 a 1950. Braulio Tavares, sempre lúcido, na orelha de Anjo de dor, frisou o grande potencial do romance recém-lançado: “Roberto de Sousa Causo manipula as doses certas de terror e erotismo para empurrar seus personagens, de modo quase hipnótico, na direção de um desenlace fatal. A eficiência de seu controle narrativo demonstra que a literatura de terror, nos moldes daquela praticada por autores best-sellers como Stephen King e Peter Straub, tem amplas possibilidades de se desenvolver no Brasil, como uma ampliação legítima do leque temático de nossa literatura.”

Bônus
Há pouco tempo foi lançada também pela editora Devir a antologia Rumo à fantasia, organizada e prefaciada por Causo para o selo Quymera. Trata-se de uma ótima compilação de narrativas nacionais e estrangeiras que exploram as muitas facetas desse gênero tão pouco apreciado pela nossa intelligentsia. Estão aí Eça de Queiroz e Ambrose Bierce, Orson Scott Card e Ursula Le Guin, Daniel Fresnot e Braulio Tavares, entre outros. São treze contos em que, nas palavras do organizador, “predomina a morte como tema central: a vida além da morte, a morte em vida e as repercussões da morte”.

A fantasia, que outros chamam de maravilhoso — Todorov, por exemplo, em sua célebre Introdução à literatura fantástica —, é a prima do fantástico e do estranho. Segundo os especialistas, as raízes do gênero estão na tradição popular: nos mitos cosmológicos e nas lendas religiosas, na novela de cavalaria, no folclore, no conto maravilhoso, na fábula e no conto de fadas. A esse gênero pertencem as narrativas de espada e feitiçaria, subgênero também chamado de fantasia heróica, como O senhor do anéis, de Tolkien, e As brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley.

A antologia da Devir reúne contos incomuns sobre o mundo incomum, sobre essa realidade quase sempre distante de nossa experiência cotidiana, com suas regras próprias, sua própria lógica, acessível apenas aos videntes e aos ficcionistas devotados à fantasia. Contos que me agradaram: Uma praga de borboletas, de Scott Card, e A negação, de Bruce Sterling. Mas de todos o meu predileto é o que fecha o conjunto: Os que se afastam de Omelas, de Ursula Le Guin. Nessa curta história de menos de oito páginas, premiada com o Hugo e incluída no Fantasy Hall of Fame, o narrador vai construindo no mesmo instante em que narra, e solicitando de vez em quando a ajuda dos leitores, uma cidade imaginária chamada Omelas e seus jubilosos habitantes. E seu segredo cruel e abominável.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho