Dez romances essenciais da ficção científica brasileira (final)

Publicado em 1984, romance de João Ubaldo Ribeiro antecipa em mais de uma década o "new weird"
João Ubaldo Ribeiro, autor de “Viva o povo brasileiro”
01/02/2013

Viva o povo brasileiro
Romance new weird de João Ubaldo Ribeiro.

Publicado em 1984, esse romance antecipa em mais de uma década o new weird, movimento que ganharia corpo na literatura anglófona apenas em meados dos anos 1990. A narrativa percorre quatro séculos de história do Brasil, seu tema central é a construção de nossa identidade bizarra e delirante. Em suas setecentas páginas, dezenas de portugueses, holandeses, índios canibais, escravos de engenho, visitantes extraterrestres, divindades do candomblé e criaturas de nosso folclore protagonizam uma batalha titânica. Para dar conta dessa diversidade cultural, o discurso do narrador também muda ao longo do romance, adotando todos os registros imagináveis: solene, filosófico, científico, coloquial, satírico, etc. O autor ainda inventou três novos idiomas para conferir mais credibilidade aos extraterrestres, às divindades e às criaturas folclóricas.

Triste fim de Policarpo Quaresma
Romance de história alternativa de Lima Barreto.

Nesse folhetim quase publicado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, entre agosto e outubro de 1911, a República dos Estados Unidos do Brasil não foi proclamada, o governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca nunca existiu e Dom Pedro II ainda é o nosso jubiloso soberano. Nesse contexto alternativo, o major Policarpo Quaresma é o idealista ingênuo que, cooptado por uma organização revolucionária, recebe a missão de assassinar o imperador. Quaresma erra o alvo, matando acidentalmente o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono Austro-Húngaro, provocando assim a Primeira Guerra Mundial. Barrada a tempo pelo editor-chefe do Jornal do Commercio, essa versão do romance foi rapidamente substituída por outra “um pouco menos delirante”, nas palavras do preocupado editor.

Crônica da casa assassinada
Romance sobre invasão alienígena de Lúcio Cardoso.

No interior de Minas Gerais, uma névoa senciente, de origem desconhecida, espalha-se pela fazenda da família Menezes, contaminando todos que aí vivem. Logo uma atmosfera de morbidez e angústia domina os protagonistas, que passam a se comportar estranhamente. Entre Nina, Valdo, André e os outros Menezes estabelece-se uma comunicação excêntrica, de natureza telepática. Subitamente vem à tona a história da decadência da família: os casos extraconjugais, os atos violentos, os amores proibidos, as relações incestuosas, as perversões. No final do romance o passado vergonhoso é apagado. Purificados pela névoa, todos perdem a consciência, o espírito. Dos protagonistas apenas o corpo físico permanece: o receptáculo perfeito para a invasão iminente.

Bônus
Os escritores e pesquisadores Petê Rissatti, Rinaldo de Fernandes e Mustafá Ali Kanso informaram-me sobre outros clássicos da literatura brasileira em semelhante situação.

Segundo Petê, O encontro marcado era pra ser um romance de ficção científica distópica. Fernando Sabino revela essa intenção em duas longas cartas endereçadas ao jornalista Paulo Mendes Campos (a primeira carta) e ao editor Ênio Silveira (a segunda).

Por sua vez, Rinaldo descobriu que Graciliano Ramos era leitor de ficção científica, especialmente de Júlio Verne e H. G. Wells. O pesquisador encontrou nos papéis de Graciliano os primeiros esboços de seu romance mais célebre, cuja trama era pra ser um pouco diferente da versão final, publicada em 1934.

E, segundo Mustafá, Olhai os lírios do campo era pra ser um romance de ficção científica new wave. Examinando os arquivos de Erico Verissimo, o pesquisador encontrou várias anotações que deixam clara essa intenção não realizada pelo romancista gaúcho.

O encontro marcado
Romance distópico de Fernando Sabino.

Eduardo, rapaz tímido de dezoito anos, com uma grave doença da qual não se encontra diagnóstico seguro na segunda década do século 21, é congelado por seus pais até que a cura seja encontrada. No fim do século, Eduardo é descongelado e descobre um mundo bem diferente do que ele conhecia. Por um lado, sua grave doença já pode ser curada em qualquer farmácia, com dois ou três comprimidos. Por outro, as condições políticas e sociais que encontra no Novo Mundo não são das melhores: na Terra com quinze bilhões de habitantes não existe mais privacidade possível. O espaço para cada ser humano em terra firme foi reduzido a vinte metros quadrados, a água é reprocessada e tem um gosto horrível, a comida é racionada e todos os passos dos cidadãos são controlados por meio de chips e outras parafernálias que Eduardo só conhecia dos romances da sua época. Mas seu maior problema será encontrar o filho de uma relação furtiva com uma vizinha, ocorrida antes de seu congelamento. Filho que agora estaria com setenta anos.
[Pesquisa: Petê Rissatti]

São Bernardo
Romance sobre vida extraterrestre de Graciliano Ramos.

Paulo Honório foi, veio, virou, revirou, ganhou, emprestou. Conheceu Padilha, emprestou mais. Padilha andava na beira do rio, tomando cachaça, descuidado da fazenda São Bernardo. Padilha não teve como pagar o empréstimo, ficou deitado na rede suja, uma chuva raiada, as telhas de bico aberto, gotejando, a fazenda com mato, potó, Paulo Honório, o olho gordo, foi cobrar o seu, peitou, encurralou Padilha, que cedeu, foi passado, logo vendeu a fazenda. Paulo Honório aí tocou o negócio, fez o motor girar, enricou, bateu em gente, enricou mais. Pagou o casamento com Madalena, ser diferente, e bem, dele, transgênica, solidarizava-se até com as árvores da fazenda, onde um dia pousaram umas patativas metálicas, de canto de mola. Madalena pegou carona com elas, largou-se para o planeta Pitão, que tinha mandacarus marrons, enfiados em geleiras, rolinhas pingando de aroeiras e alguns pastos, o que fazia Madalena, em seu casebre de travessas de prata entalado entre duas rochas, com jirau e uns pingüins engraçados no terreiro, lembrar do filho e chorar aos montes, que eram elevados e com neve rosada. E ninguém mais soube o que aconteceu com Madalena, só Padilha, que virou professor-operário em São Bernardo e contava a história pros meninos embasbacados, de olhos também metálicos pra saber a verdadeira história da mulher que viajou com as patativas para Pitão, enquanto Paulo Honório, diante do seu crepúsculo, seco, cacto, a alma agreste, a alma poente, fenecia.
[Pesquisa: Rinaldo de Fernandes]

Olhai os lírios do campo de asteróides
Romance new wave de Erico Verissimo.

A primeira parte do romance se inicia com Eugênio Fontes, um próspero exomédico, viajando de sua propriedade lunar rumo à cidade orbital da Terra, que dista três horas de astronave. O chamado veio de um hospital da cidade orbital, onde seu grande amor do passado, Olívia, está morrendo. É durante essa breve jornada que Eugênio, em sucessivos flashbacks, retoma seu passado. Ele evoca a infância infeliz no campo de asteróides, dada a pobreza do pai fabricante de trajes espaciais, e o desejo que acometeu o protagonista de se tornar um homem rico e livrar a família de todas as vergonhas geradas pela miséria. É por essa razão que Eugênio se casa por interesse com Eunice, uma mulher muito rica, e abandona Olívia. Nesse meio-tempo se inicia a Primeira Guerra Interplanetária. Com essa história ao fundo, o autor compõe um painel de tipos humanos sempre às voltas com o conflito segurança versus felicidade. Na segunda parte, Eugênio rompe o casamento com Eunice, encorajado por saber da existência de Ana Maria — filha que teve com Olívia —, e passa a ser um médico do campo de asteróides, atendendo os mineiros pobres. O romance termina com uma cena antológica: Eugênio e sua filha Ana Maria passeando alegremente de buck-rogers pela praça orbital de Ceres.
[Pesquisa: Mustafá Ali Kanso]

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho