Eu passei toda a infância e a pré-adolescência na frente da televisão (Speed Racer, Terra de gigantes, Os três patetas) ou dos álbuns de quadrinhos (Mortadelo e Salaminho, Asterix, Tintim). Somente no final dos anos 70 os livros começaram a me interessar. Então desliguei a tevê e passei a ler de tudo: Lygia Fagundes Telles, Stanislaw Ponte Preta, Isaac Asimov, Ray Bradbury. E Henfil. Sim, meus jovens do glorioso século 21, o cartunista genial e hemofílico, pai do Fradim e da Graúna, também escreveu livros muito legais. Meu predileto continua sendo o Diário de um cucaracha.
A vida alheia sempre me interessou. Nisso, acredito eu, não sou diferente de noventa e nove por cento das pessoas (só os santos não sentem curiosidade). Sempre gostei de diários, coletâneas de cartas, memórias, autobiografias e confissões de todo tipo. O blogue descende diretamente desses gêneros de escritura íntima. Diário de um cucaracha é uma coleção de cartas — quase seiscentas, a primeira de 4 de outubro de 1973, a última de 30 de junho de 1975 — enviadas de Nova York. Nelas Henfil conta seu deslumbramento inicial com os Estados Unidos, sua traumática via-sacra pelos hospitais americanos, o reencontro com o irmão exilado e os detalhes de sua experiência num sindicato distribuidor de quadrinhos para todo o universo. São relatos engraçados, pitorescos, pungentes.
Outro diário que li com imenso interesse, nessa mesma época, foi o de Virginia Woolf, que vai de 1915 a 1941, terminando quatro dias antes da manhã em que a autora se afogou nas águas do rio Ouse. Outro foi o da talentosa escritora mineira Maura Lopes Cançado, intitulado Hospício é deus, relato doloroso de sua convivência com a esquizofrenia. E o da favelada e semi-analfabeta Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, best-seller internacional. E tantos outros: o de Anne Frank (quem não leu?), o de Frida Khalo, o de Kafka, o de Sartre, o de Camus, o de Anaïs Nin, o de Gombrowicz, o de Kierkegaard, o de George Sand, o de Susan Sontag.
Os diários às vezes se confundem com as autobiografias, e vice-versa. A miniautobiografia de Maiakovski, intitulada Eu mesmo, de estilo sintético e telegráfico bem ao gosto dos modernistas, eu só fui ler uma década depois, na tradução de Boris Schnaiderman. Lembro que o vigor das anotações secas e concisas do poeta russo — anotações muito parecidas com os posts dos primeiros blogues — impressionou-me tanto que eu prometi a mim mesmo que, se um dia mantivesse um diário, ele seria desse jeito: feito de anotações secas e concisas.
Curiosamente, até hoje eu jamais quis manter um diário. Reconheço: eu não tenho muita paciência pra anotar o que acontece no meu dia-a-dia, tampouco para comentar ou refletir sobre o cotidiano do condomínio, do quarteirão, do bairro. Quando o assunto é a escritura íntima, eu sou muito mais leitor do que produtor. A maneira que encontrei de colecionar publicamente meus dias é mais reservada. Meu próprio blogue, como vocês podem conferir, está mais pra um mural onde eu afixo breves avisos do que pra um diário virtual.
O sucesso dos anônimos
Repositório de segredos, no passado um diário não era escrito para ser mais tarde publicado e comentado por muitos. A maioria dos diários íntimos jamais era divulgada, e quando era, isso raramente ocorria fora do pequeno círculo familiar do diarista. Mesmo com a chegada da indústria cultural, em geral os editores e os leitores só se interessavam pelo diário das grandes figuras públicas já falecidas: escritores, músicos, pintores, príncipes, empresários, revolucionários e estadistas que em vida se tornaram célebres. As cartas que as pessoas comuns escreviam a seus amigos e familiares também não eram para ser divididas com milhares de leitores desconhecidos. Apenas as missivas de figuras famosas, como Kafka, Monteiro Lobato e Henfil, despertavam o interesse dos editores.
Hoje o costume é outro. Até mesmo o menos importante dos seres humanos pode despertar o voyeurismo de todos nós. Como escreveu a pesquisadora Denise Schittine em seu livro Blog: comunicação e escrita íntima na internet (Civilização Brasileira, 2004): “O novo diário íntimo, o blogue, gera um relacionamento de mão dupla entre um autor disposto a contar sua vida íntima a um público desconhecido e um público que se propõe a ler sobre ela e a comentá-la. Os indivíduos se interessam pela vida de gente anônima como eles, e esse fenômeno é observável não só no caso específico do diário íntimo na internet como em outras mídias. As webcams e os programas no estilo do Big Brother são um exemplo disso. O público se vê curioso por vasculhar a vida do outro, sem que esse outro seja necessariamente alguém famoso. É o sucesso dos anônimos”.
No passado o que motivava alguém a manter durante anos, às vezes décadas, um diário secreto? Geralmente o desejo bastante humano de não esquecer os eventos domésticos, os nomes, as datas, as tristezas e as alegrias. Mnemósine, a deusa grega da memória, a mãe das nove musas, a guardiã do passado, patrocinou a maioria desses diários contra as forças do Letes, o rio do esquecimento. O diarista escrevia pra si mesmo, com o objetivo apenas de desabafar por escrito ou de registrar sua versão dos fatos mais relevantes de sua época, e as páginas de seu diário mantinham-se em segredo até a sua morte. Ou pra sempre, quando o diarista as queimava, livrando-se delas, por pudor, ao menor pressentimento da morte.
Mas também houve os que guardaram cuidadosamente seu diário secreto para que um dia, muito tempo depois — ah, a vaidade —, ele fosse descoberto por outras pessoas que pudessem admirá-lo e publicá-lo. Afinal, de que vale registrar os fatos reprimidos e as idéias proibidas se não houver um leitor? Na era da globalização, graças à internet esse desejo de que certos segredos não passem totalmente despercebidos ganhou mais espaço, menos restrições, mais poder de propagação. “O diário íntimo na internet vem assumir o pecado da vaidade do escrito íntimo, ele é a prova de que o diarista pretende falar sobre si mesmo e espera que um grupo de pessoas se interesse e goste do assunto” (Denise Schittine).