No número 47 da revista Panorama Editorial, da Câmara Brasileira do Livro, Marcus Vinicius Barili, vice-presidente da CBL, revelou que no Brasil são lançados em média 1,5 mil novos títulos por mês, quase 20 mil por ano. Com as reedições, esse número anual salta para 45 mil. Quem lê tudo isso? Ninguém sabe, nem os pesquisadores. Boa parte desses lançamentos é de livros de literatura. Romance, novela, teatro, coletânea de crônicas, contos ou poemas de autores brasileiros contemporâneos.
O problema maior é que, ao menos em relação à prosa de ficção, a grande quantidade não está resultando na necessária qualidade. Pelo menos essa é a opinião de muitos leitores e críticos. Para estes assíduos freqüentadores da literatura brasileira contemporânea, parece que está faltando assunto, parece que os autores não estão conseguindo evitar a repetição. Como se os prosadores de hoje fossem turistas que livro após livro visitassem rigorosamente sempre os mesmos batidos cartões postais.
A crise conjugal de um casal de classe média. As dores e os desejos reprimidos de uma dona de casa. A vida cruel e violenta na periferia e na favela, ou no sertão. O dia-a-dia porra-louca de um adolescente antenado. As epifanias e os alumbramentos da infância metropolitana ou rural. Esses temas são constantes na obra de Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu e tantos outros. E na obra dos autores da Geração 90. E na dos autores da Geração Zero Zero.
Esses são os temas da vida comum. Mas de toda parte chegam estranhas e inquietantes notícias da vida incomum, que, não sei por quê, não são aproveitadas pela nossa literatura. Notícias sobre certas descobertas da neurologia e da física teórica, que começam a remodelar a psicologia e a filosofia. Notícias sobre certos avanços da medicina, da cibernética e da informática, que estão obrigando os especialistas a reformular a definição de humanidade e humanismo. Notícias sobre a origem e a constituição do universo, a origem e a evolução da vida, muito mais espantosas do que boa parte da literatura fantástica atual.
Títulos de algumas matérias publicadas recentemente na revista Scientific American: Teoria da informação vê o universo como gigantesca máquina computacional, Como o cérebro forma a individualidade, Genes patenteados e o limite da apropriação comercial do DNA, Proezas do macaco-prego derrubam dogmas sobre a evolução da inteligência, Leis da física ajudam a explicar o mercado financeiro, A metamorfose de computadores magnetológicos, Cientistas debatem como os neurônios modelam a realidade, Animais cósmicos e a distorção do espaço-tempo. Já não está na hora dessas questões começarem a aparecer também na prosa brasileira contemporânea?
É certo que, a fim de atualizar e ampliar o campo da literatura, há vários autores brasileiros arriscando, de maneira tímida, tratar desses novos temas. A modalidade mais adequada, no momento, ainda é a ficção científica. Mas em geral, devido à abordagem ingênua ou mecânica, o resultado obtido por esses autores não tem sido muito animador. Vários erros grosseiros têm sido cometidos. Pedi a Roberto de Sousa Causo, Ataíde Tartari e Fábio Fernandes — três dos nossos melhores autores de ficção científica — que apontassem os principais erros.
Quais são os cinco erros mais comuns que os escritores do mainstream cometem ao escrever ficção científica?
Roberto de Sousa Causo:
1. Achar que a ficção científica no cinema e nos quadrinhos representa tudo o que o gênero pode ser. É preciso ler alguma FC em literatura.
2. Achar que a linguagem da ficção científica depende apenas de neologismos pseudocientíficos, tipo XPTO-23 ou Megatrônico R-4321. A
linguagem da FC é complexa, estabelecida ao longo de muitas décadas, e mesmo quem quiser inovar ou romper com ela precisa conhecê-la em
alguma extensão.
3. Confundir ficção científica com ficção científica juvenil. A maior parte das técnicas narrativas do mainstream são aceitáveis na FC, e não é preciso ser paternalista com o leitor.
4. Achar que ficção científica é coisa de americano, de modo que seus personagens têm de ser americanos ou quando muito europeus, e o contexto do Brasil ou de outros países em desenvolvimento não têm lugar dentro do gênero. Pelo contrário: a atual fronteira sendo desbravada pela FC é justamente o Terceiro Mundo e as situações multiculturais.
5. Desprezar o diálogo com os praticantes de ficção científica brasileira. Ninguém reinventa a roda nem faz sozinho um gênero criar raízes em um país como o Brasil.
Ataíde Tartari:
1. Confundir FC com o trash: muita gente que conhece a FC de ouvir falar vincula o gênero a elementos trash, como naqueles filmes antigos que uniam baixo orçamento e invasão marciana. Existe FC trash, sem dúvida, mas não é o elemento trash que define a FC.
2. Não estudar ciência antes de fazer uma especulação científica: assim como um romance histórico exige pesquisa, uma especulação sobre algo que (ainda) não existe também exige pesquisa para ser plausível, convincente. Devemos sempre saber sobre o que estamos escrevendo, não?
3. Achar que as regras da boa escrita perdem valor na FC: já vimos muitos bons escritores mainstream desaprenderem a escrever quando tentam a FC. A preocupação com a qualidade do texto deve ser a mesma.
4. Achar que verossimilhança não combina com FC: investir no absurdo pelo absurdo só funciona no humor, e mesmo assim com conhecimento de causa, senão vira humor involuntário.
5. Ignorar a alternativa slipstream, obra que transita dentro e fora do gênero, como 1984. Muita gente que tem prevenção contra a FC já apreciou uma obra de FC sem se dar conta. Histórias mainstream que empregam elementos fantásticos, techno ou futurista também são FC.
Fábio Fernandes:
1. O uso desequilibrado da ciência. Alguns escritores do mainstream, ao se deparar com o desejo ou a encomenda para escrever uma história de FC, muitas vezes levam a tarefa ao pé da letra: acham que precisam escrever um tratado científico, porque, em sua opinião, só é ficção científica se tiver ciência. Outros, um pouco mais escolados, sabem que não é bem assim, e se permitem as liberdades que o ofício generosamente oferece, que são as da invenção: no entanto, acabam por inventar absolutamente tudo, inclusive novas leis da física ou da lógica, que acabam não levando a lugar algum. Ou seja, ciência em excesso ou nenhuma ciência não põem mesa em termos de FC.
2. A linguagem rebuscada e formal. O escritor do mainstream parece pensar que FC é necessariamente algo asséptico como o interior de uma nave espacial do filme 2001: uma odisséia no espaço, e portanto deve-se ter ou formalidade e grandiloqüência, ou frieza, tanto nos gestos quanto nos diálogos dos personagens. Eles esquecem que a FC é mais um modo do que um gênero, ou seja, é perfeitamente possível (e até aceitável) que se use a FC para falar da nossa realidade, do aqui e do agora. Uma das características do estranhamento, segundo Viktor Chklóvski, é justamente trazer a familiaridade para o leitor (o que pode ser feito pela via da linguagem, fazendo com que as personagens falem gírias ou pelo menos uma linguagem sem barroquismos) a fim de que o choque da estranheza seja maior (por exemplo, a percepção de que estamos em outro planeta, ou num universo paralelo).
3. O desconhecimento praticamente absoluto do que se produziu nos últimos trinta anos na literatura do gênero. Na década de 1970, talvez devido ao cinema, talvez devido à grande quantidade de traduções de autores clássicos como Isaac Asimov, Ray Bradbury e Arthur C. Clarke, e até mesmo outros que hoje são desconhecidos do grande público, como Fredric Brown e Robert Sheckley, alguns escritores do mainstream tinham um bom conhecimento do que se produzia lá fora. Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão escreveram histórias de ficção científica bem antenadas com sua época (Fonseca escreveu alguns contos do gênero na década de 1960, ao passo que Brandão escreveu o romance experimental Zero e a distopia Não verás país nenhum nas décadas de 70 e 80 respectivamente). Mas hoje você não vê mais autores de fora do gueto escrevendo boas histórias de ficção científica. Cabe aqui um parêntese: o interessante é que o autor brasileiro até pode esperar um Roberto Bolaño ser publicado em português, mas se demorar muito ele vai à luta e compra a edição em espanhol, destrincha, percorre o labirinto e lê. Quer dizer, ele toma conhecimento do cânone (seja esse cânone oficial, acadêmico, moderno, modernoso, etc.), seja com esse autor, ou com outro mais atual de outro país, como os EUA, a Inglaterra, a França. Mas para o mesmo acontecer com um autor de ficção científica este precisa virar cult, como Philip K. Dick (que morreu há vinte e sete anos), caso contrário nada feito.
4. O foco na alegoria. O escritor do mainstream de modo geral tenta fazer um breakthrough escrevendo com o foco na forma, e não no conteúdo, e não raro acaba escrevendo alegorias ou parábolas, à maneira dos contes philosophiques franceses. Isto não é um erro: os anos 1960 e 1970 estão cheios de ótimos exemplos narrativos de FC experimental cujo foco era voltado mais para a forma do que para o conteúdo, como Stand on Zanzibar, de John Brunner, ou Dhalgren, de Samuel Delany. Entretanto, não estamos mais nos anos 1970, e o que vemos hoje é o retorno da narrativa clássica (leia-se clássica aqui não como conservadora, mas como conversadora, que dialoga com tradições, como Conrad, Balzac, Faulkner, Hemingway, Férenc Molnar, Erico Verissimo), e a ficção científica só tem a ganhar com a versão século 21 desse diálogo.
5. Não me ocorre um quinto erro, ainda que pecadilhos existam vários.