Bolhas e balões

Quando escrever histórias afasta o vampiro da insanidade
01/12/2008

Aos sete anos eu encontrei a máquina do tempo estacionada bem no centro do quintal de casa. Ela não era feita de metal e plástico e vidro e fios e botões. Ela era feita de luz e sombra e música e perfume e bolhas de sabão. Eu viajei muito nela. Depois eu cresci, a máquina do tempo desapareceu e eu percebi que essas engenhocas maravilhosas surgem apenas para as crianças. Os adultos vivem sonhando com elas — nos quadrinhos, na literatura, no cinema, na tevê —, mas elas só aparecem mesmo é para as crianças. Principalmente para as míopes e as tímidas. Na máquina do tempo eu também era luz e sombra e música e perfume e bolhas de sabão. Eu atravessava as décadas e os séculos, mesmo sem saber ver direito as horas no relógio de ponteiros! (Isso ainda existe, relógio de ponteiros?) Anos depois ela desapareceu, a máquina… Hoje eu não lembro os detalhes das viagens, mas eu nunca esqueci seu cheiro gostoso de outono, de flor de laranjeira, de vaga-lumes no quintal de casa. O mesmo cheiro gostoso dos enormes balões de ar quente que eu via na tevê: coloridos, paquidérmicos, voando sobre as montanhas. Então quando a máquina desapareceu, eu disse adeus às bolhas e passei a viajar de balão.

Aos oito anos eu descobri que as canetas, as borrachas e as réguas são criaturas inteligentes e atrevidas. Das três, as canetas são as piores. Como os fantasmas, elas nunca estão por perto quando a gente mais precisa. Nessa época minha caneta predileta era inteirinha vermelha com frisos brancos e sua tinta era invisível. E venenosa. Com ela eu planejava escrever minhas memórias secretas: a viagem a Saturno e minha paixão por Raquel, a princesa do palácio gasoso de Júpiter. Quando eu estava muito ocupado pra escrever, a caneta estava sempre disponível, sempre no estojo. Participei de batalhas, atravessei oceanos a nado, expandi impérios e acalmei revoltosos, e a caneta sempre aí, ao meu alcance. Mas no dia em que eu decidi pra valer começar a escrever, cadê a caneta? Evaporou. Outra caneta não podia ser, afinal minhas memórias eram pra continuar secretas: a tinta tinha que ser invisível e venenosa. Revirei os armários e nada, nem sinal da danada. Semanas depois eu desisti de procurar. Também desisti de escrever minhas memórias. Aí a caneta apareceu. Tarde demais. Minhas memórias eram tão extensas e tão interessantes e tão ricas em detalhes maravilhosos que, se eu começasse a escrever, precisaria de duzentos anos pra terminar. “Ai que preguiça”, pensei. E a caneta foi pro lixo. Depois eu a peguei do lixo e dei de presente a um primo invejoso que tinha o péssimo hábito de mastigar a ponta das canetas. Plano diabólico, não? Mas aí minha consciência doeu tanto — sou um imperador justo, nobre e generoso — que eu roubei a caneta de volta e joguei de novo no lixo.

Grande e vazio
Aos nove anos eu fiquei muito doente. Febre, dor de cabeça, mal-estar. Meu nariz e minhas orelhas caíram. Os olhos também. Eu fiquei muito doente porque o Come-Dorme morreu, coitado. Ele não era meu melhor amigo porque ele era muito parado e quase não entendia o que eu falava. Dizem que a maioria dos dálmatas é assim. Nós o enterramos no quintal. Mesmo ele não sendo meu melhor amigo, mesmo ele sendo muito parado e estúpido, depois do enterro eu vi que sentia bastante a sua falta. Coitado do Come-Dorme. Ele não gostava dos mesmos programas que eu nem sabia jogar videogame, mas então, depois do enterro, eu comecei a sentir uma coisa esquisita. Eu comecei a sentir frio, como se o mundo fosse muito grande e vazio. Eu observava os pardais no muro e lembrava que o Come-Dorme gostava de olhar pra eles. Eu observava as nuvens e via um cão sossegado e quieto, desligado de mim e do mundo. Aí veio a febre, a dor de cabeça e o mal-estar, aí meu nariz e minhas orelhas caíram, e os olhos também. De tanto chorar. A boca só não caiu por milagre.

Aos onze anos eu fiquei novamente muito doente. Febre, dor de cabeça, mal-estar, veio tudo de novo. Dessa vez, não sei por quê, eu não perdi nenhuma parte do corpo. Dessa vez eu também não consegui nem chorar. Eu fiquei muito doente porque eu estava apaixonado pela Raquel fazia anos, mas não tinha coragem de contar isso a ela. Meu amor pela Raquel era muito medroso e vivia se escondendo. Ah, Raquel, minha princesa do palácio gasoso de Júpiter! A escola ficava muito mais colorida quando ela chegava. Todas as equações de segundo grau ficavam muito mais fáceis quando ela sentava ao meu lado. Não havia análise sintática que resistisse ao seu encanto moreno e sorridente. Doente, eu tive que ficar em casa, não pude ir à escola. Isso me deixou mais doente ainda! Então eu decidi sarar logo, do contrário não veria mais minha princesa. Sarei em três dias e voltei à escola resolvido a revelar à Raquel meu grande amor. Imediatamente percebi que isso não seria tarefa fácil. No recreio, assim que eu a vi sozinha no pátio fui logo caminhando na sua direção, morrendo de medo, mas decidido. Na mesma hora brotou no meio do pátio uma parede de fogo que nos separou. Essa parede tinha seis metros de altura, era impossível atravessar as chamas. Também brotaram do chão os soldados de granito do general Zepelim e eu fui obrigado a convocar meu exército de mutantes pra defender a cidade. Imagine só o pandemônio. A batalha foi tão estressante que eu desmaiei logo no começo. Nem sei como terminou. Quando acordei eu já estava em casa, na cama.

Peça secreta
Aos catorze anos eu fui salvo pelos livros. Antes de os livros me salvarem eu nem sabia que estava em grande perigo. Eu sabia que estava confuso, mas não em grande perigo. Eu estava confuso com o mundo, com as pessoas. Os adultos — principalmente os políticos, os professores e toda a minha família — pareciam atores numa peça secreta da qual todos participavam mas ninguém podia falar abertamente. Às vezes esse estranhamento me levava a acreditar que a realidade é apenas um sonho. O cinismo das pessoas, a crueldade das guerras, as falhas na comunicação humana, tudo isso era a evidência suprema de que este mundo não é real. “É o País das Maravilhas”, eu dizia, e você sabe que o País das Maravilhas, da Alice, parece mais um manicômio: lá só tem doido. “Estou ficando louco”, eu também reconhecia. Só podia ser isso: eu estava pirando na batatinha. Quando não estava apavorado com essa idéia de estar enlouquecendo, eu tentava relaxar e ler um romance. Ou uma coletânea de contos. Ou de poemas. Essa foi a terapia que me salvou. A leitura e principalmente a escritura. Escrever minhas próprias histórias afastou bastante o vampiro da insanidade. Ele continua lá longe, à espreita, querendo sugar minha saúde, mas enquanto eu continuar envolvido com a literatura, sei que ele não terá coragem de se aproximar.

Onde foi parar tudo isso?

Essa época foi incrível. Como pude perder seus contornos, seus detalhes? Envelhecer é isso? É esquecer o tesouro enterrado no próprio jardim? Até ontem eu mal sabia que os jardins existem justamente para ser vasculhados. Então, ao ver as bolhas e os balões coloridos, tudo voltou com muita força. Foi durante o aniversário da pequena Thais, a nova princesa do palácio gasoso de Júpiter (eu casei com a Raquel). A festa estava chegando ao fim, as crianças estavam brincando de fazer bolhas de sabão, eu estava distraído e os balões coloridos entraram delicadamente no meu campo visual. Os pequenos balões coloridos. Magníficos. Eles trouxeram de volta os gigantescos balões coloridos voando sobre as montanhas. Sem aviso eu voltava ao passado. Olhei ao redor. A máquina do tempo continuava lá no quintal, adormecida, e todo o resto também estava no seu devido lugar: a caneta vermelha, Come-Dorme, as primeiras aventuras interplanetárias, os primeiros livros. A viagem durou apenas três segundos, que é a duração dos melhores devaneios. Mas ao despertar eu soube — tive certeza — que terei meu passado pra sempre. No presente e no futuro.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho