Adeus, velho amigo

O dia em que o trema foi para a cadeira elétrica
01/10/2008

Os juízes assinaram a sentença de morte: o criminoso vai mesmo pra cadeira elétrica. O promotor, os jurados e a audiência comemoram, e eu estou chateado. Já estou de luto. Não aprovo essa decisão, essa festa, esse extermínio. O condenado é meu amigo. Meu amigo íntimo. Passamos juntos por momentos muito delicados, muito perigosos.

Na hora em que anunciaram a sentença, bateu o desespero. Foi difícil controlar a ansiedade e o medo. Minhas mãos ainda tremem. A boca continua seca.

Quando meu amigo estiver morto, reduzido a simples amigo imaginário, que farei? Guardarei suas cinzas ou as jogarei no Atlântico? Por quanto tempo eu conseguirei manter viva sua memória? Por quanto tempo eu conseguirei conviver com seu fantasma?

Os juízes da reforma ortográfica assinaram a sentença de morte: o trema vai mesmo pra cadeira elétrica.

Em breve a família ficará menor. Em breve o til, a crase, o acento agudo e o acento circunflexo perderão o irmão querido.

No sítio do Observatório da Imprensa, o professor Gabriel Perissé também manifestou indignação: “Aceitarei de bom grado tudo, menos a queda do trema. Os linguistas sem trema me fazem pensar que a língua será linga. Os bilingues e trilingues estarão mais próximos do estilingue. Comer linguiça vai ser um enguiço! Uma nota de cinquenta reais eu não aguentarei! E o pinguim, coitado. E a eloquência empobrecida…”

Que canção fúnebre é essa que atravessa todos os meus escritos? Que melodia melancólica é essa que viaja de livro em livro, peregrinando tristemente por minha biblioteca inteira?

Só pode ser o Réquiem para o bom combatente.

Durante décadas o trema encimou elegantemente o u quando precedido por g ou q e seguido por e ou i, para que ele fosse pronunciado atonamente, sem formar dígrafo.

Não. Ele não merecia essa traição em nome da mais fútil simplificação. Ele não merecia ser atirado no lixo da História, como coisa supérflua, inútil, ultrapassada.

Falta de eloqüência
Agüenta, coração! Daqui pra frente como poderei escrever, com tranqüilidade, sem ambigüidades, um conto eqüestre (por exemplo) sobre o seqüestro de um alcagüete puro-sangue maníaco por lingüiça calabresa, amarrado e levado por um pingüim trilíngüe viciado em açúcar, e suas nefastas conseqüências emocionais? O resgate foi pago (caía o maior aguaceiro na rodovia Anhangüera) ao lingüista delinqüente: cinqüenta reais em jujuba e arroz-doce oferecidos por um sagüi desmilingüido de avental ensangüentado (era só groselha). Estranhos e eqüidistantes laços de consangüinidade ligam o sagüi, o pingüim e o puro-sangüe, digo, sangue. Sobre iniqüidades assim (o seqüestro, não os estranhos laços) como poderei escrever? Sem o trema isso não será exeqüível. Tremo só de pensar: sem o trema será freqüente a falta de eloqüência narrativa e, pior, de grandiloqüência poética.

Os juízes assinaram a sentença de morte. Quando meu amigo estiver morto, reduzido a simples amigo imaginário, que farei? Que canção fúnebre é essa que atravessa todos os meus escritos?

Ah, agüenta, coração! Daqui pra frente como poderei argüir, com eqüestre grandiloqüência e exeqüível eqüidistância, em consonância com os preceitos da lingüística e da ambigüidade, os pingüins delinqüentes e os sagüis inconseqüentes, ambos de avental ensangüentado de groselha? Isso será simplesmente inexeqüível.

Pensa bem. Quantas palavras levam o trema? Cinqüenta? No máximo cem?

Pra que matar? Os mesmos juízes que assinaram a sentença de morte podiam simplesmente ter condenado o criminoso à prisão perpétua. Iam os anéis, ficavam ao menos os dedos. Esses juízes podiam simplesmente ter condenado as cinqüenta, cem palavras extremadas a viver apartadas do resto do léxico. Longe da sociedade intolerante. Num gueto. Ou num campo de refugiados. Ou numa reserva. Como os índios.

Esfola, lincha, afoga
Hoje o trema, amanhã o til. Escreve aí o que eu estou dizendo: o til será a próxima vítima do sistema letrado. “Mas o til é muito útil, não podemos viver sem ele”, você dirá indignado. Eu sei que o til é muito útil. Mas o trema também é e olha só o que fizeram com o pobre: cadeira elétrica, câmara de gás, injeção letal, fuzilamento, guilhotina, forca. Daqui a pouco, por falta de vítima melhor, alguém furioso vai vociferar que o til não é tão útil não. Melhor dizendo, alguém vai vociferar que “o til nao é tao útil nao”. Então todo mundo que morre de preguiça de botar o til em avião, pavão e confusão fará coro com o celerado: “Esfola, lincha, afoga!”

Efeito dominó. Depois do til será a vez do abominável crase. Depois da crase, o irritante acento agudo. Depois do acento agudo, o esnobe acento circunflexo.

E o apóstrofo? E a cedilha? E o hífen?

E o pingo!? Eu quase ia esquecendo o pingo no i, essa não! Existe coisa mais inútil do que o maldito pingo no i, pobrezinho?! “Esfola, lincha, afoga!”

Então é isso?

Muito bem, vamos ao trabalho! Não há tempo. Precisamos organizar logo a fuga. Precisamos localizar no mapa holográfico o santuário mais seguro. Precisamos reunir em segredo todos os diacríticos, todos os pontos, todas as possíveis vítimas futuras, e escapar. Pra onde? Pra outro plano da existência. Para o vão invisível que há entre a primavera e o verão, entre a página treze e a catorze, entre a quarta e a quinta dimensão.

Lá há música, mel e mil delícias.

Lá o trema continuará cumprindo diligentemente sua função de guarda-costas, dando força ao u, cuja voz, sem ele, perderia a autonomia e desapareceria, sufocada pela dos vizinhos: g ou q, de um lado, e ou i, do outro.

Muito bem, vamos ao trabalho! Não há tempo. Precisamos organizar logo a fuga. Só assim a justiça será feita. Quando o trema estiver a salvo em outro plano da existência, o mundo voltará a ser um belo lugar pra viver. Tudo voltará ao normal.

Perissé está certo: “Aceitarei de bom grado tudo, menos a queda do trema. Mas bem sei que isso é idiossincrasia. Nada que o tempo não possa curar. Na pior das hipóteses os amantes do trema não viverão para sempre. Daqui a duzentos anos todos vão achar estranho que houvesse gente usando esses dois pontinhos em cima da letra u”.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho