(…) há um senhor que todas as noites pede uma cerveja, depois
pede um bacardi com limão & finaliza com um chupito de ervas — a mão dele está suja de graxa e cada copo que usa deixa
um rastro escuro, um rio das memórias dos dias, dos meses &
dos anos — a testa é formada por infinitas linhas & a boca por
poucos dentes — tanto silêncio, tantos mortos.
O caixa-d’óculos, este é o epíteto que tenho carregado desde a infância. Aquele que não enxerga um palmo diante do nariz, aquele cuja existência depende das lentes, para que a realidade faça algum sentido. No tempo de um eu ainda menino, ser o “caixa-d’óculos” era ostentar no rosto, a máscara do escárnio. A crueldade no seu estado puro, das crianças, não perdoava míopes, gordos, gagos, ou um qualquer que se diferenciasse do grupo perfeito.
Trago este assunto à baila, pois penso que nunca deixei de ser o caixa-d’óculos. Esta imagem, da minha primeira infância, vem à tona, após a leitura do livro Para quem está se afogando, crocodilo é tronco, de Wladimir Vaz Mourão. Usei os meus óculos bem graduados para navegar nos seus poemas, mas a realidade que vi estampada em cada verso mostrou-me que na verdade eu estava nu, sem visão, perplexo, com uma linguagem que me dizia a todo o momento que era preciso voltar a aprender a andar, voltar a adaptar as minhas lentes para ver melhor, para ler com mais acuidade.
O poeta, com os seus versos, diz da necessidade de estarmos atentos a todo um mundo do invisível, um mundo de minudências, de detalhes tão especiais, que na maioria das vezes não o vemos, passamos por cima deles, pois só olhamos, e prestamos atenção, ao mundo do grande, do espaçoso, do espetacular.
Wladimir descreve um universo que, sendo grande, mostra-se no detalhe quase microscópico, no qual as nossas lentes reais são quase obsoletas. E, de facto, constata-se (como Saint-Exupéry) que o essencial é invisível aos olhos; já que a leitura também se faz com outros sentidos, quer os da perceção; quer os da alma.
O caixa-d’óculos, desta forma, precisou despir-se das suas vestes, para sentir na plenitude a linguagem do poeta. Por isso socorreu-se às armas da audição, do tato, do olfato, do paladar, da memória, da imaginação, da consciência, do raciocínio, da afeição, da esperança, e de tantas outras ajudas do ser. Outras lentes, de fé e adoração; outras lentes para ver e para ler o outro, mas também a nós mesmos.
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