“Pai. Pai.” Esta filha que me chama não é minha. Está enganada a pobre cachopa. (…)
Escrever para lembrar que a vida é feita de fluxos de esquecimentos e de lembranças. Escrever para lembrar que a memória é o nosso maior património e que, portanto, deve ser valorizada, celebrada, aproveitada no mais íntimo, e ínfimo, detalhe. Assim se lê O homem sem mim, da escritora Rute Simões Ribeiro, que, partindo de um caso de Alzheimer, explora o quanto a memória que cada um carrega é, simultaneamente, fundamental e tênue.
O ponto de partida da narrativa nasce de um documentário televisivo que retratava a rotina diária de um homem com a doença. A imagem que mais impressionou a autora foi o momento em que esta pessoa real, ao ver-se na televisão, comoveu-se com a figura daquele homem idoso, com demência, sem reconhecer que era ele próprio. Aquela dissonância, o desprendimento de si mesmo, foi de uma humanidade comovente e reveladora.
A autora ficou tão impactada com aquele homem, que a ficção parecia não encontrar espaço para respirar. Fez-se urgente encontrar um lugar no universo da escrita, onde ela pudesse construir o sentido do texto; e meses depois, a escritora esqueceu um pouco o caso concreto, criando as condições ideais para uma construção literária.
“Escrevi na primeira pessoa, assumindo a voz de um homem de 74 anos com Alzheimer, uma experiência radicalmente diferente da minha.” O desafio era o de circular dentro da mente dessa personagem, explorando o labirinto das suas memórias, onde o reconhecimento e o estranhamento coexistissem. A personagem tem nalguns momentos, a consciência da sua condição — sabe que há alguma coisa fora do lugar —, enquanto noutros vive inteiramente num tempo anterior, confundindo as memórias com o presente. A realidade deslocada é o cerne da narrativa.
A autora reforça também a passagem calendarizada do tempo diário, o que transmite a sensação de uma ordem linear de dias, mas sem a sua correspondência na memória da personagem. Há uma normalidade aparente — um dia segue-se ao outro —, mas o lugar da memória está permanentemente deslocado. O que a personagem vivencia intimamente não é necessariamente o dia que está a viver, mas sim uma realidade já acontecida, o que gera uma constante dissonância com o mundo exterior.
As reações das outras personagens — a mulher e os filhos — chegam-nos apenas como ecos, percebidos através do que ele vê, ouve e sente; mas conseguimos inferir, como leitores, a tristeza e a complexidade dessas relações. A narrativa acaba por ser uma longa e profunda conversa da personagem consigo mesma, um mergulho literário num universo onde a identidade se desfaz e se reconstrói a cada momento, através dos frágeis fios da memória que ainda subsistem.

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