Rute Simões Ribeiro

Ensaio fotográfico de Rute Simões Ribeiro
Foto: Ozias Filho
01/11/2025

“Pai. Pai.” Esta filha que me chama não é minha. Está enganada a pobre cachopa. (…)

Escrever para lembrar que a vida é feita de fluxos de esquecimentos e de lembranças. Escrever para lembrar que a memória é o nosso maior património e que, portanto, deve ser valorizada, celebrada, aproveitada no mais íntimo, e ínfimo, detalhe. Assim se lê O homem sem mim, da escritora Rute Simões Ribeiro, que, partindo de um caso de Alzheimer, explora o quanto a memória que cada um carrega é, simultaneamente, fundamental e tênue.

O ponto de partida da narrativa nasce de um documentário televisivo que retratava a rotina diária de um homem com a doença. A imagem que mais impressionou a autora foi o momento em que esta pessoa real, ao ver-se na televisão, comoveu-se com a figura daquele homem idoso, com demência, sem reconhecer que era ele próprio. Aquela dissonância, o desprendimento de si mesmo, foi de uma humanidade comovente e reveladora.

A autora ficou tão impactada com aquele homem, que a ficção parecia não encontrar espaço para respirar. Fez-se urgente encontrar um lugar no universo da escrita, onde ela pudesse construir o sentido do texto; e meses depois, a escritora esqueceu um pouco o caso concreto, criando as condições ideais para uma construção literária.

“Escrevi na primeira pessoa, assumindo a voz de um homem de 74 anos com Alzheimer, uma experiência radicalmente diferente da minha.” O desafio era o de circular dentro da mente dessa personagem, explorando o labirinto das suas memórias, onde o reconhecimento e o estranhamento coexistissem. A personagem tem nalguns momentos, a consciência da sua condição — sabe que há alguma coisa fora do lugar —, enquanto noutros vive inteiramente num tempo anterior, confundindo as memórias com o presente. A realidade deslocada é o cerne da narrativa.

A autora reforça também a passagem calendarizada do tempo diário, o que transmite a sensação de uma ordem linear de dias, mas sem a sua correspondência na memória da personagem. Há uma normalidade aparente — um dia segue-se ao outro —, mas o lugar da memória está permanentemente deslocado. O que a personagem vivencia intimamente não é necessariamente o dia que está a viver, mas sim uma realidade já acontecida, o que gera uma constante dissonância com o mundo exterior.

As reações das outras personagens — a mulher e os filhos — chegam-nos apenas como ecos, percebidos através do que ele vê, ouve e sente; mas conseguimos inferir, como leitores, a tristeza e a complexidade dessas relações. A narrativa acaba por ser uma longa e profunda conversa da personagem consigo mesma, um mergulho literário num universo onde a identidade se desfaz e se reconstrói a cada momento, através dos frágeis fios da memória que ainda subsistem.

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

 

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho
Rute Simões Ribeiro
Nasceu em Coimbra (Portugal), em 1977, e mora atualmente em Lisboa. É licenciada em direito e pós-graduada em proteção de menores pela Universidade de Coimbra. Doutorou-se em política de saúde, foi investigadora e professora, votada à gestão humanista. Criou a casa invisível Academia das Artes para a Construção de Asas, onde expõe crianças e jovens à ideação e à consciência, de si e do outro, e à possibilidade literária. Escreveu O homem sem mim (Nós, 2024), vencedor do Prémio Hugo Santos, A breve história da menina eterna (Nós, 2022), Os cegos e os surdos, finalista do Prémio LeYa, além de outros textos, nos quais se incluem ensaios ficcionais, narrativas breves, peças de teatro e quase-poemas.
Ozias Filho

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1962. É poeta, fotógrafo, jornalista e editor. Autor de Poemas do dilúvioPáginas despidas, O relógio avariado de DeusInsularesOs cavalos adoram maçãs e Insanos, estes dois últimos, em 2023). Como fotógrafo tem vários livros publicados e integrou a iniciativa Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura 2017. Publicou em 2022 o seu primeiro livro infantil, Confinados (com ilustrações de Nuno Azevedo). Vive em Portugal desde 1991.

Rascunho