Escrevo sobretudo acerca de eletrodomésticos e de entre
todos, sobre máquinas de lavar roupa. O seu ritmo
arruma-me a alma. (…)
Uma máquina de lavar roupa suja. Máquina de misturar vidas; de devorar pessoas; máquina de escrever que, em certo momento, expele, explode, vomita cá para fora outra visão de mundo, sempre em transformação e a girar e a girar, no seu processo de metamorfose. Máquina de centrifugar, o que não tem fuga possível, o que habita sem contemplações dentro do corpo, quer sejam vísceras, sangue, coração ou alma. Máquina que ora se afasta ou que ora se aproxima do sol, não há coragem de ser Ícaro o tempo todo; máquina que, no entanto, nunca desiste, mesmo que as asas se desgastem no cansaço.
Há um quê de expiação, de desconjuro, nesta máquina de lavar, da escritora Rita Tormenta. Um processo de moer ou de mastigar os dias, de devorá-los com raiva como se, no instinto da fome, estivesse a clarividência destes mesmos dias. Máquina de canibalizar, máquina sinônimo de estômago, processo de digestão que modela o que antes não tinha forma, só sentimento obscuro.
“Obviamente que eu sou a carne da minha escrita (…) e por isso há sempre algo de confessional (…), e nesse sentido eu prefiro ser canibal a abutre (…) mostramo-nos muitas vezes sem a consciência desse efeito (…) tudo que era visceral me incomodava e eu queria uma escrita mais despojada e, apercebo-me, que estou no polo oposto”, ironiza a escritora, que já fez as pazes com este seu modo de escrever.
A autora compreendeu que a sua vocação é aquela de centrifugar a linguagem; uma máquina que não segue as regras da mecânica ou da obviedade e que, portanto, é nova a cada ciclo da digestão. A tempestade, seguindo o raciocínio da escritora, sequer tem um estilo literário definido, pois para alguns terá a marcação da poesia, enquanto para outros, o texto virá travestido de forma prosaica.
A voz popular costuma dizer que roupa suja se lava em casa, longe da vista dos outros. No dizer de Rita Tormenta, cada marca ou dobra de tecido tem as entranhas à mostra. É impossível não vermos o que se revela em cada pedaço de corpo nesta máquina giratória que, não obstante a crueza da linguagem, revela também o equilíbrio e a bonança que se seguem após cada tempestade.
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