A cidade que nos engole, com a sua máquina de construir pessoas, assim como se fossem edifícios. A cidade que dia após dia nos rouba um pouco do passado, e que o deixa cada vez mais esmaecido na rotina das modernidades. A cidade que não tem tempo, pois a roda continua o seu movimento, e que não pode parar, aliviar ou dar folga a uma engrenagem que parece nunca sair dos eixos. A cidade que tem sede, e muitos olhos para um futuro, e que relega o passado de tradições e de histórias ao rápido esquecimento. Esta não é a cidade do poeta cearense Mailson Furtado.
O ontem e o amanhã, para o poeta, devem fazer parte da mesma equação que compõe os dias do presente. Na sua poesia, no livro À cidade, premiado com o Jabuti em 2018, a cidade se inventa// eu mesmo me invento// sinto que fui inventado junto dela// crescemos juntos// nos inventando// quando me inventava (a ser gente)// a cidade começava a se inventar// ora inspirada na tv// ora inspirada nela mesma// ora inspirada no que nunca foi inventado// pião bila conto botão pipa trancelim bola-de-meia bola-de-trapo bola-de-capa (…).
A cidade deste escritor, de Varjota, é, a um só tempo, ativa e estática, que não se anula, ou que se combate, uma cidade múltipla, que é o somatório de dinâmicas variadas, no mesmo comprimento de onda, fazendo com que o passado, as tradições, o ruralismo, o campesinato, o folclore, convivam na mesma casa com o desenvolvimento, com os confortos, com o global, com a modernidade, com um futuro que sempre nos entra (quer se queira ou não) pelos olhos e pela vida dentro.
Nesse sentido, vê a sua cidade como algo antropofágico, “que vai engolindo coisas, mas vai regurgitando outras”, num processo contínuo, que não deixa que aquilo que foi devorado se transforme por completo, mas que seja vomitado, memorado de alguma forma. “As pessoas têm medo, tanto do grito de mau agouro da Acauã, esse grito da natureza, um grito de uma ave anunciando que será um ano ruim de chuvas; como também têm medo das notícias da Fundação Cearense de Meteorologia. Não há confronto, ou seja, de um lado, o misterioso, o folclórico, a superstição — aqui presente no canto de uma ave —; do outro lado, o choque das notícias da internet, da meteorologia (…) nenhuma, nem outra se anulam. Esta é a minha cidade.”
A própria estética do seu livro, nos transmite a construção desta cidade que caminha de mãos dadas. Uma cidade que não se acaba, mas, que pelo contrário, acumula-se em camadas, e que avança a várias velocidades; ora mais lenta, demorando-se nos detalhes, no retrato de outros tempos; ora mais rápida, como se a pressa dos dias não aliviasse ninguém. Uma cidade que é una nos seus capítulos, pois que é pretérito, pretérito mais-que-perfeito, e futuro do pretérito. Todas elas, a cidade, uma dádiva presente.
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