Que farei quando tudo arde?
Sá de Miranda
Tudo arde, enquanto a memória tenta salvar o passado dos escombros do fogo. O fogo que lavra sem controle, e que magoa pela perda imediata de vidas e de bens materiais. A memória do fogo é algo que arde sem se ver, mas está bem acesa, vistosa e de forma perene na vida daqueles que presenciaram a derrocada do castelo. A memória do fogo transporta na sua chama a dualidade; de um lado a destruição que não tem preço; do outro, inevitavelmente, o começar do zero, o renascer.
Foi graças à tragédia que o escritor Jozias Benedicto, forçosamente, descobriu a poesia, depois de ter escrito alguns livros em prosa. Um incêndio na sua casa, há alguns anos, mudou o caminho às pernas e, nesse sentido, quis o destino que os seus textos adquirissem novas asas; nascia assim, o primeiro livro de poemas: Erotiscências e embustes. “Eu não sou poeta, eu me transformei em poeta por causa do fogo (…) a poesia nasceu da lembrança de uns sonetos que escrevi, aos quinze anos de idade, e que se perderam nas cinzas.”
Como contar uma história que desapareceu para sempre no cremadouro? Para Jozias, através dos fragmentos da memória e do embuste, pois a parte que falta ao quadro completo, a mente reinventa o enredo. A memória também prega partidas, pois o que aconteceu nunca é exatamente igual àquilo que recordamos.
Mais que cadernos com sonetos, livros inteiros ficaram no incêndio. Mais que livros, vozes que continuaram bem vivas e a conversar intimamente com o escritor. Mais que livros e vozes, duas em particular: Borges e Clarice. Mais que Borges e Clarice, a escritura de uma monografia que germinou a partir da experiência do fogo: Palavras Queimadas, Um incêndio com Borges e Clarice. Mais que uma monografia; uma conversa entre escritores, entre o fogo e a memória devastada.
O que farei quando tudo arde? A resposta do escritor brasileiro ao seu homólogo do século 16, Sá de Miranda, talvez fosse muito simples, de alguém que passou por entre as brasas, e sobreviveu: escrever, escrever, escrever, e renascer em cada novo escrito; e que um dia o tempo, eterna chama, haverá de comer.
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