“Não quero saber do lirismo que não é libertação”, diz Manuel Bandeira, no seu Poética, um poema de 1930, que buscava romper com as correntes bem-comportadas, anteriores à sua época. Contudo, a sua interpretação não se esgota no seu tempo e ecoa no cotidiano de poetas e leitores até aos dias de hoje.
Cito Bandeira — poeta de minha eleição — ao ser surpreendido pelos versos de Ana Freitas Reis, que me põem em nocaute, de rastos, sem reação externa, por longos e intensos momentos. Cada palavra, pronunciada no silêncio particular deste quarto, onde me encontro, toca cirurgicamente partes do meu corpo, como se este fosse seu instrumento. Versos que de tão epifânicos, nos revelam com uma clareza obscena, o próprio sentido de ser e de estar poeta.
“Esqueces o facto de que a raiz da árvore// vence sempre a estrada”, canta a poeta. Extraídos do seu último livro Cordão, estes dois versos, epigráficos, são em si um livro inteiro. Diz, ao mesmo tempo, da precisão do que nos vai no íntimo, e da premonição daquilo que necessita vir à tona, vencer a estrada, assumir-se libertação. Diz da própria essência da poesia.
“A parte mais interessante da poesia”, salienta a poeta, “é essa mistura que não é clara, nem obscura, mas sim qualquer coisa que surge, que revela, e que pode nem fazer muito sentido, nem para o observador, nem para o próprio poeta, mas que nalgum momento faz-se clarão (…) para mim a poesia tem de ter sempre esta componente de mistério, de invisível, de inefável”.
Esta raiz impressa no seu poema, que irrompe a estrada, esta raiz que é força lírica, levantando o asfalto, é também a mesma que está entranhada na terra, na corrente sanguínea ou no subsolo que habita sem permissão dentro de cada um. Uma raiz que tanto liberta, revela-se ao outro, como se esconde, no interior do corpo terra. É nesta tensão entre o dentro e o fora; entre o que se revela e o que se esconde, e entre o que é doloroso e prazeroso, que o poema nos agarra. A partir daí, lançamos âncoras para descobrir este livro como um todo. Um Cordão, umbilicalmente invisível, um corpo fértil de estradas, um espelho (sempre com duas faces), uma raiz que rompe a estrada, ou uma estrada que alui perante a um eu profundo.
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