Poesia e adversidade

Na TV Globo com Paulo Autran, Fernanda Montenegro e Diléa Frate. Conversa amena, tranqüila
Paulo Autran
01/01/2014

15.12.1983
Na TV Globo com Paulo Autran, Fernanda Montenegro e Diléa Frate. Conversa amena, tranqüila. Paulo leu os textos que escrevi para a “Retrospectiva 1983”, programa de fim de ano da emissora — lia e ia gostando, sorrindo. O título que sugeri foi 1983 — Com o coração na mão. Foi uma boa experiência. Usei de poemas que tinha, fiz outros: inseri poesia na TV. Um caminho. Acho que é conseqüência daquele que abri com o Jornal do Brasil, jogando poesia no jornal.

Paulo Autran lembrava da Belo Horizonte dos anos 1960, ou fins de 1950: aquela Geração Complemento, o balé do Klauss Vianna, o Teatro Experimental. Naquele tempo, cheguei a pedir/insinuar que Paulo gravasse uns poemas meus. Menino metido! O disco — fantasiava eu — seria só para mim. Ia gravá-lo no estúdio da Rádio Inconfidência. Pura fantasia que não deu certo, obviamente. Mas Autran, na ocasião, me tratou bem. Agora lembrávamos disto com certa doçura.

Curioso: ganhei mais com esses poemas na Globo e na Estrutural do que com os livros de poesia. Quer saber? Eu me sinto numa ótima, na força da criação. Poderia escrever hoje A divina comédia e, amanhã, a Eneida.

(Nota em 2013: Paulo Autran participou do CD de crônicas minhas editadas pelo Paulinho Lima, Luz da Cidade, anos 1990.)

11.11.1989
Ouvindo uma vez mais o disco de poemas de Aragon musicados por Léo Ferré, me ocorreu a necessidade de um ensaio/crônica — A traição dos poetas — sobre o divórcio entre poesia e público, coisa que aconteceu na medida em que os poetas passaram a escrever para si (para ninguém). Ouvindo o disco, penso nos que sabiam se comunicar, como Éluard, Lorca, Neruda, Pessoa, Whitman, etc. Os poetas pararam com as “canções” tipo Lorca. Isto faz falta. Os músicos populares sozinhos não podem.

07.02.1990
Uma coisa impressionante: o projeto gráfico de um livro sobre o pintor Iberê Camargo. A primeira seqüência de fotos disposta como se fossem quadrinhos de cinema, e ele de corpo inteiro atuando diante de uma tela, pintando. No final, depois das coisas sobre a sua obra, uma nova série impressionante de fotos: desta vez ele diante de um stand de tiro, fazendo pose e disparando. As fotos de pintura e as de tiros são parecidíssimas.

Nota: em 5 de dezembro de 1980, Camargo matou a tiros um cidadão desconhecido na rua, supostamente ao interferir em sua briga com uma mulher. Se a Justiça soubesse dessas fotos na época do julgamento, o que faria?

15.09.1990
Num encontro ocasional com Leandro Konder, saúdo-o dizendo/provocando: “Li o artigo em que seu irmão (Rodolfo) rasga a fantasia e abjura o Partido, na Playboy”.

Ele sorri discretamente, sem comentar. Para aliviar, falo que acho bonito a relação dele com o José Guilherme Merquior: tão opostos e, no entanto, tão corteses entre si. Referia-me a um artigo seu sobre mais um livro de Merquior.

Leandro me conta, então, que Merquior foi muito útil e gentil quando Rodolfo esteve preso: dava, mesmo através da embaixada, notícias constantes sobre ele. Foi gentil, também, convidando-o para jantar em seu apartamento de diplomata várias vezes, quando Konder, no exílio, “passava fome”. Disse que ia lá e tirava a barriga da miséria.

É curioso ver como a amizade neste caso reverte a uma coisa positiva — respeito mútuo —, apesar das diferenças ideológicas. Merquior, agressivo com os esquerdistas, respeita Leandro.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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