O Nobel Vargas Llosa em 1982

Estou em Berlim no Hotel Plaza para o Festival Horizonte de Arte Latino-americana apenas como observador
Mario Vargas Llosa, autor de “La ciudad y los perros”
01/12/2010

30.05.1982
Estou em Berlim no Hotel Plaza para o Festival Horizonte de Arte Latino-americana apenas como observador. Já falou Octavio Paz. Acaba de falar Mario Vargas Llosa. (Agora em 2010, ele ganhou o Nobel de Literatura. Eu o havia conhecido em Nova York em 1967 e saímos para a ceia de fim de ano com alguns amigos. Nas conversas, demonstrou conhecimento do modernismo brasileiro. Ele havia acabado de publicar La ciudad y los perros, que li em inglês. O livro era um sucesso).

A conferência de Llosa foi brilhante. O mesmo esquema: ao lado, duas pessoas, perguntavam (em alemão) sobre sua obra. Ele começou meio frio, mas foi se aquecendo aos poucos. Quando contou (recontou) o episódio de Canudos, me emocionei. Curiosa a força da narrativa e do narrador. Não que ele tenha querido narrar. Mas a coisa em si é tocante.

Algumas coisas boas que ele falou:

• No seu ponto de vista, os personagens e a história deflagram a novela/romance. É daí que vem a forma. Por isso, critica ferozmente (e estou de acordo) o nouveau roman, preso só à forma. Critica Nathalie Sarraute que escreveu Flaubert: un prédécesseur. Llosa discorda. Acha que o ensaio é fascinante e falso, pois diz que em Flaubert o personagem não tem importância, mas a forma. Cita (para ironizar Sarraute) uma frase de Borges: “cada autor inventa seu precursor”.

• Flaubert foi o primeiro a descobrir/teorizar algo que os romancistas sabiam implicitamente: a novela/romance não é a realidade, é uma visão artística da realidade. Mas partindo da realidade dá à realidade algo que ela não tem, que é a linguagem. Flaubert inventou/colocou também isto: quem narra a história não é o narrador, a ficção é sempre uma mentira.

• O narrador inocente, depois de Flaubert não é mais possível. Quando em alguns anos Victor Hugo publica Os miseráveis, com o “narrador ingênuo”, parece deslocado. Penso eu: a obra inovadora envelhece suas contemporâneas e mesmo algumas futuras. (E hoje em 2010, quando recolho essas notas também constato: Os miseráveis é obra que continua viva e necessária).

• O jovem narrador europeu nasce preso à tradição literária. O jovem narrador da América Latina (a exemplo de Llosa e sua geração) tem o vazio atrás de si. E esse vazio era uma riqueza, diz ele. Pois liam livros de todos os países: Estados Unidos, Rússia, França, Itália, etc.

• O que caracteriza a literatura latino-americana é sua diversidade. (Aqui ele desenvolve um ponto sobre o qual tenho escrito: na América Latina convivem a Idade da Pedra e o século 20). Isso (continua Llosa) nos deu uma ambição. Quando se tem atrás de si um Shakespeare, tem-se que ser modesto, mas quando se tem atrás de si o vazio, pode-se ter grande ambição.

(Curioso: parece que aqui ele assume a primeira pessoa e revela consciente e inconscientemente seu desejo de ser um Balzac, Dostoievski latino-americano).

• Faukner foi tão importante para os latinos porque descrevia também um mundo subdesenvolvido, agrário.

• Os europeus, desde a descoberta, viram a América Latina não como ela é, mas como aquilo que a Europa não é. As crônicas desde o princípio narram isso. Padre Cristóvão da Cunha descreve as amazonas com detalhes — este é um mito levado pelos europeus. Até mesmo os nomes dos lugares colonizados têm nomes europeus: Miraflores é tirado de um livro de cavalaria. Nomes que os europeus projetaram na realidade. Colombo mesmo chegou à América achando que eram as Índias e viu a Índia na América. O Burg Jargal de Victor Hugo descreve o Haiti e as cenas de escravidão e os sentimentos de acordo com a estética da época.

(Explorar uma metáfora que me ocorre: “o espelho do outro lado do mar”. Se Vargas Llosa conhecesse A visão do paraíso de Sérgio Buarque de Hollanda, poderia ilustrar melhor).

• Acusa a seguir a utopia em que acreditou quando jovem como agente da violência, pois elimina os que são contra. Estaria se referindo a Cuba e Rússia.

A conferência foi um sucesso total. Conforme falei a Curt Mayer-Clason, ocorreu-me uma observação: vendo os latino-americanos de tão bom nível (Paz e Llosa) e esperando os brasileiros que vão falar na sexta-feira, vejo que eles levam uma vantagem. Os nossos não têm condição de fazer um discurso com igual charme e conteúdo.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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