O JB, o país e a poesia

Um poema e alguns artigos afrontam a ditadura brasileira; o povo agradece
“Ocorreu. O JB convidou-me para ocupar o espaço de Drummond.”
01/08/2010

(Fragmentos de minha história com o Jornal do Brasil, que deixa de ser impresso para ser on-line. Participei do JB em suas diferentes fases. Publiquei no antigo SLJB, em 1958; trabalhei no Departamento de Pesquisa em 1967; fui copidesque em 1970; casei-me com uma colega de redação, Marina Colasanti; fiz a página dupla de poesia no Jornal de Poesia (1973); publiquei ali ensaios e poemas entre 1979-1984, reunidos no livro Política e paixão (Rocco) e substituí Drummond como cronista em 1984)

02.07.1981
Sai o resultado do IPM (Inquérito Policial e Militar) sobre a bomba no Rio Centro. O Exército reúne secretamente 30 generais para fornecer “explicações”. Os jornais, como o JB, dando grande espaço a isto. Em todo o país, nas casas, ruas, festas, universidades, uma imensa indignação. Mentem descaradamente. E os idiotas do PC e mesmo certa esquerda abafando tudo e fazendo a apologia de que o que interessa é a eleição de 82. Burrice política. Não se chega à verdade pela mentira. Não se chega à democracia pela ditadura (…)

Uma grande indignação nacional. Um grande desamparo cívico. Reduzir, como a própria oposição faz, o episódio a um “erro de trabalho” é esquecer que no Rio Centro havia milhares de pessoas. O jeito é converter esta perplexidade em poesia.

07.07.1980
Dito e feito. Como não conseguia trabalhar, pensar ao menos em outra coisa, lancei minha indignação em forma de poesia. Fiquei todos esses dias escrevendo, reescrevendo, procurando caminhos para vazar o ódio. Dia 6, finalmente, lá pelas 11 horas da manhã estava pronto “A implosão da mentira” (…) Ao terminar, tremenda sensação de alívio e realização. Levo-o ao JB. Mal dormi à noite, pensando no dia seguinte: como sairia, se sairia, minhas possíveis encrencas com as forças de segurança. Assumi todos os riscos premeditadamente. Não posso ficar como um cão covarde num canto com tanta calhordice por aí.

Resultado no dia seguinte: desde meu irmão Carlos, diretor da Petrobrás, entusiasmado e gritando: “Puta merda!”, o dia inteiro o telefone me chamando com pessoas emocionadas, felizes, aliviadas. Tudo o que um ego machucado civicamente, como o meu, precisava ouvir para se restaurar. Curioso constatar duas coisas, ou mais: poesia não é só um discurso carente. Ao contrário, é um discurso pleno. Publicações como esta e a do Que país é este? no JB me ensinaram muito.

14.02.1984
Saiu ontem o artigo A preguiça do presidente. Hoje saiu a resposta da Presidência da República (O trabalho do presidente), assinado pelo porta-voz, Carlos Átila.

Susto. Não esperava tanto. Acostumado a não ser ouvido diretamente, esta reação me tocou. Leio a Folha de S. Paulo, O Globo e Tribuna da Imprensa: todos dizem que o presidente ficou puto, ficou triste e irritado. Dalva Gasparian me diz que correu o boato de que o presidente teria renunciado.

Agora bate o telefone de novo, a Veja querendo fazer o meu perfil para esta semana, por causa do artigo. O Walter Fontoura, diretor do JB, já me dizia ao telefone: “Puta merda! Que rolo!” sem me especificar exatamente o que ocorreu.

23.02.1984
A situação ficou mais curiosa, porque depois da longa entrevista à Veja (que acabou não saindo), fui a Brasília para reunião do CNPq. Fiquei até na dúvida se deveria ir, pois todos previam coisas ruins, e ali é a boca do lobo.

A IstoÉ, fazendo levantamento da crise, refere-se ao meu artigo. A Folha de S. Paulo fez dois editoriais (Galeno de Freitas e José Silveira) comentando o incidente com o artigo. A coisa esquenta mais, pois o JB, através de Vicente Barreto, que chefia o Caderno Especial, publica o poema Sobre a atual vergonha de ser brasileiro, uma resposta minha à resposta da Presidência da República. O poema caiu como uma bomba. Repercussão nas praias, bares, clubes, escolas, repartições. Telefonemas, telegramas, pessoas me param no elevador, nas ruas, consultórios. O poema transformado em pôster.

Sobretudo me perguntam: “Não foi preso ainda?”.

E eu raciocino: o que fez a ditadura com a nossa dignidade e coragem? Ficam pasmos, me chamando de Maiakovski, num misto de espanto e temor.

13.06. 1984
Walter Fontoura me comunica que o Nascimento Brito quer minha colaboração às segundas-feiras. Mas tenho dificuldades em aceitar. O jornal piorou tanto, tão malufista… Mas, de novo, não agüentei e falei com o Walter Fontoura que o jornal estava muito ruim, e ele aceitou que cometeram erros sendo contra as “Diretas”, por exemplo. Diz que estão perdendo a guerra dos classificados para O Globo, que houve uma hora que tinham 80% desses anúncios. Hoje… Isso de ver jornal morrendo me angustia, todo dia tem alguém que me fala mal dele.

06.10.1984
Ocorreu. O JB convidou-me para ocupar o espaço de Drummond.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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