23.11.1994
Me hospedei com Marina na casa do embaixador Alberto da Costa e Silva e de sua esposa, Verinha, ao vir para esse insólito encontro de intelectuais latino-americanos. Estivemos juntos várias vezes na Colômbia, onde ele também foi embaixador. A casa é ampla, parece um museu de esculturas africanas, lembrança do tempo que passaram na Nigéria e no Benin. Só que a África entrou na vida dele avassaladoramente.
Ouvimos dele histórias da África (que sumarizo aqui para não esquecer). Parecem aquelas narrativas de Wittgenstein em Observações sobre o ramo dourado de Frazer.
• O cidadão que em Lagos lhe disse que naquele dia havia sido a pessoa que levou o “ovo” ao rei da tribo (o “ovo” vazio, seu conteúdo tirado com um estilete, era passado ao chefe quando este deveria se matar por estar velho demais);
• A estória do chefe que tinha muitas mulheres, mas uma delas devia estrangulá-lo quando ficasse impotente;
• O chefe da tribo que ia visitá-lo com as seis mulheres, que ficavam esperando o marido no carro;
• A arquitetura da casa do chefe da tribo dava para cada um dos quartos das sete mulheres a partir de sua sala;
• A mais velha do clã é que escolhia a esposa mais nova;
• E a mulher que disse a Verinha (esposa de Alberto): “Não sei como vocês ocidentais agüentam. Um homem dá muito trabalho, tem que casar com várias mulheres”.
…
Ontem, no palácio, o presidente do Paraguai, Juan Carlos Wasmosy, reuniu para um jantar uns trinta ou quarenta escritores deste “Encuentro de escritores latinoamericanos”. Prédio com casas baixas sobre colunas — estilo colonial —, tudo pintado de branco. Mesas postas sobre o gramado. Todos sem gravata e paletó, como o presidente. Ele, alegre, informal. Engenheiro dinâmico, deu de seu bolso sessenta mil dos cem mil dólares para o “Encuentro”.
Convidam-me para agradecer a recepção em nome dos escritores. Janto ao lado do poeta uruguaio Washington Benavides, de Tomás de Mattos — autor do best-seller ¡Bernabé, Bernabé! — e do jovem poeta Rafael Courtoisie.
Faço o discurso, que agrada.
Vitor Castelli chama um assessor do presidente e conversamos sobre planos para o desenvolvimento de uma política cultural com o Paraguai. Aproveito e falo com o presidente sobre o acervo relativo à Guerra do Paraguai que existe na Fundação Biblioteca Nacional. Nestes dias, estamos fazendo um seminário sobre aquela infausta guerra. (Foi lisonjeiro que tivessem me convidado para falar. Falei em português por razões político-culturais, pois aqui o português é corrente, e por respeito à língua alheia.)
É uma sensação estranha, quase surreal estar aqui neste palácio de onde Stroessner paralisava a história de seu país. Mais estranho ainda lembrar meu tempo de estudante metido em lutas contra ditadores — e agora ali, na toca do ex-lobo.
Nesses dias, sintomaticamente, ameaça de golpe aqui: três militares foram presos pelo presidente porque deitaram falação. Uns dizem que o golpe é inevitável. Outros, que o panorama já não é tão simples. Esse é primeiro congresso de escritores realizado nesses quase quarenta anos desde que Stroessner, em 1954, tomou o poder.
O presidente fez um discurso emocionado agradecendo a minha fala e referindo-se à amizade com o Brasil, etc. Solicitaram-me que batalhasse por uma nova “missão cultural brasileira”. Isto seria importante para nós que vivemos de olho na França e nos EUA, sem mirarmos nossos vizinhos. Se Fernando Henrique quisesse, poderíamos fazer grandes coisas. Acho que essa minha itinerância pelos países latino-americanos recentemente tem me ensinado algo. Às vezes me sinto meio um embaixador itinerante.