Nava, Niemeyer, Darcy, etc.

Dia 13, à noite, matou-se Pedro Nava com um tiro de revolver na cabeça, mais ou menos às 9 da noite, a 50 metros de sua casa, na Glória, junto a uma árvore
Niemeyer: tropeço nas letras.
02/06/2014

17.05.1984
Dia 13, à noite, matou-se Pedro Nava com um tiro de revolver na cabeça, mais ou menos às 9 da noite, a 50 metros de sua casa, na Glória, junto a uma árvore. O país traumatizado, pois ele era bonachão e estava no auge da glória literária. Sobral Pinto, Ziraldo e Drummond não queriam aceitar a tese do suicídio, apesar de o revólver ser do Nava, de ele ter pólvora nos dedos, etc. Surpresa geral. Agora se torna público que era um deprimido e que o suicídio é um tema em sua obra. Em entrevistas, sempre revelava que não gostava da vida. Com efeito, esse depressivo, na véspera, fora tirar pressão do Francisco Assis Barbosa.

O assunto dominou a conversa em todas as rodas e classes sociais. Acho esse suicídio mais incômodo que o de um jovem: o jovem é mesmo impaciente. Por não compreender o sentido, desespera-se. Mas o velho deveria estar acostumado. Pelo visto, não.

E, no entanto, Pedro Nava fazia planos: para o aniversário, etc. Como será esse curto-circuito repentino? Numa entrevista ele dissera que ninguém deve se admirar de velhos que, de repente, dão um tiro na cabeça.

Mas sempre me lembro de La dolce vita, de Fellini, daquele personagem “raffiné” que escutava música clássica, sabia sânscrito e, no entanto, se mata e mata os dois filhos, deixando a mulher desesperada.

Outro dia, alguém me disse de uma mulher que estava se preparando para sair, já com o cabelo enrolado e que, no entanto, enfiou a cabeça no forno do fogão e se matou com gás.

Penso que poderia escrever um artigo, mas deveria ser um poema, um poema que falasse: 1) da solidão do suicida; 2) o imprevisto; 3) da crueldade consigo e conosco; 4) do seu direito de fazer isso; 5) do absurdo da vida; 6) que o homem não é o único animal que se mata[1].

A Globo me chama: pede um poema sobre isso. Tenho que ir lá para receber o dinheiro de outras colaborações, e, na sala, esperando a Diléa Frate, começo a esboçar algo num envelope que tenho nas mãos, sem saber no que vai dar:

Um tiro na memória
A mão que inscreveu outros
Apagou sua própria estória.

Depois da conversa com outros da equipe do Jornal da Globo, concluo que seria impossível, difícil, fazer o que estava começando a esboçar: queriam um texto que acompanhasse a câmera saindo da casa dele e indo até o lugar do suicídio. Reportagem/poesia? O risco, digo, é cair no melodramático. Todos concordam. E como, depois, eu mostrasse à Diléa aqueles versos, ela os pediu como quem não quer nada. De noite, na TV, além da entrevista que dei, sai o primeiro verso como título da reportagem e a leitura do texto do poema fechando o programa.

Achei simpático. A Folha de S. Paulo o reproduziu no dia seguinte.

Finalizando: que violência, que exibicionismo, que agressividade neste gesto de Nava. Na sua obra, ele diz que não há nada de bom na vida, a não ser o ato sexual. E pensar que ele passou 82 anos se torturando, adiando a própria morte…

09.03.1984
Bom carnaval. Fomos ver a inauguração da Passarela do Samba. Obra magnífica/monumental de Niemeyer/Brizola/Darcy. Era comovente o ar de felicidade carismática de Brizola conversando com o povo na passarela, dando entrevistas na pista, ali diante do camarote fechado de Figueiredo (que se recusou a aparecer ou a doar o camarote que lhe foi oferecido).

A ideia de Darcy de fazer uma “apoteose’ na praça deu certo, apesar de todas as críticas. Estivemos com ele, Cláudia, sua mulher, mais Rosiska e Miguel, no seu camarote, no Baile do Hotel Nacional (50 dólares por pessoa). Darcy insistindo para que eu seja júri das escolas de samba. Já havia telefonado antes. Hoje, o Leonel Katz, que trabalha com ele, liga insistindo para que eu aceite. Mas não me apetece.

Marina e eu nos divertimos muito no baile do Hotel Nacional, eu vestido de Marajá, fiquei realmente com cara de hindu. Marina como uma roupa elegante que tirou do baú.

09.03.1984
Outro dia num restaurante alguém deu umas porradas no Niemeyer, depois de insultá-lo de tudo. Ao ouvir “comunista de merda”, Niemeyer voltou para brigar, e aí apanhou. E tudo isso aos 70 e tantos anos, com o nome que tem, ter que ficar assim à mercê de alucinados.

Indecente a campanha do Globo e do JB contra Brizola-Darcy e a passarela. Mas a TV Manchete brilhou. Supriu a tentativa de sabotagem da Globo. E o carnaval sobreviveu ao Globo e ao JB, que diziam que ninguém estava comprando ingressos, que as estruturas da construção estavam desabando.

Como eu sugeri ao Darcy, agora é fazer o “carnaval de inverno”: com as escolas vencedoras de outros estados. Os olhos dele brilharam.

Nota

[1] Acabei depois fazendo o poema “O suicida”. E acabei postando no Facebook em 2013 por ocasião do suicídio dessa pessoa admirável que foi Walmor Chagas.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho