Mudam-se os tempos

Descubro que escrevo este Quase-diário para mim mesmo, para reencontrar coisas do passado
O português José Saramago, vencedor do Nobel de Literatura em 1998
01/09/2013

26.09.1995
Descubro que escrevo este Quase-diário para mim mesmo, para reencontrar coisas do passado. Hoje, por acaso, procurando a data do Salão do Livro de Paris, dei de cara com coisas escritas em 1985, 1986 e 1987 que me tocaram e das quais havia esquecido inteiramente. Se relesse este texto aos oitenta ou oitenta e cinco anos, que sensações teria? Revivo. Renasço. Relendo. Não é para ser publicado, repito. Talvez eu tirasse daqui alguns trechos, notas, para um diário ou fragmentos de uma vida.

17.12.1995
Semana desagradável: o ministério dirigido por Bresser divulga que sou um dos “marajás” da república! Se fosse piada não teria graça. Um desatento (ou desastrado?) listou funcionários que “ganhariam” mais do que o presidente da república. Eu, hein?! Surrealismo puro: estou entre os seguintes marajás mencionados: João Cabral de Melo Neto, Darcy Ribeiro, Heloisa Buarque. Mandei um fax ao Bresser e à Casa Civil. No dia seguinte, ele se desculpou nos jornais. Mas é um dano irreparável para uma leitura apressada dos fatos. Fiz uma crônica a respeito.

Bem que reparei que, estando em Brasília, o fotógrafo de um jornal me seguia em todas as partes, sempre tirando fotos. E eu pensando “o que é que esse cara quer, que não se aproxima nem pergunta nada?”. A imprensa é também um acúmulo de desinformações.

10.12.1995
Chego a Maputo [Moçambique]. O embaixador Luciano Ozorio Rosa contou-me estórias curiosas: Maluf no Iraque: mandou assessores prepararem sua viagem. Lá, passando de carro por uma determinada estrada, viu uma capela, informaram-lhe que ali vivia um sacerdote, guru de Saddam Hussein. Não teve dúvidas. Mandou parar, bateu, apresentou-se, falou em árabe com o religioso. Mais tarde, o ministro todo poderoso do petróleo no Iraque o recebeu em Bagdá. Mas só por dez minutos — e com reservas, de pé. Quando Maluf ia saindo, lá estava ninguém mais ninguém menos que o sacerdote que vira na capela da estrada. Saudaram-se com muita intimidade. O ministro, que era amigo do “homem”, pediu para Maluf entrar novamente e fez-lhe todos os rapapés. Diz Luciano que Samora Machel resolveu reorganizar as aldeias e serviços à moda de Mao Tsé-Tung. Desenraizou as pessoas. Criou problemas muitos.

Passeando à noite pelos jardins do Hotel Cardoso, há um casamento acontecendo e uma recepção. Um dos convivas saúda efusivamente o embaixador e diz que quer falar comigo, me conhece. Muito estranho, penso. Um conhecido aqui? Afastamo-nos e alguém me diz: “Este era o chefe de Inteligência de Samora Machel. Até hoje a morte de Machel num acidente é um mistério”. Dizem que foi ele que possibilitou/organizou a explosão do avião do ex-presidente. Estava com o presidente em uma missão e na última hora alegou que não podia voar.

30.01.1996
Depois de cinco anos, consegui que o Prêmio Camões fosse entregue em Brasília, no Palácio. Não sei quantas vezes fui ao Itamaraty, ao Palácio, ao Minc e às embaixadas falar da necessidade de se fazer isto. Agora deu certo. Saramago e Pilar felicíssimos. Pedi a ele o discurso autografado para a seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional. Jantamos ele e Pilar, Jorge Amado e Zélia, mais Marina, Paloma Amado, Eric Nepomuceno e Marta no Vecchia Cucina.

Conferência de Saramago no auditório da embaixada de Portugal, cheíssima. Ele falando sobre sua peça, sobre Camões, sobre seus textos transformados em ópera. Um escritor de sucesso, que começou aos cinqüenta e três anos, quando perdeu o emprego no Diário de Notícias.

Pilar é bonita e inteligente. O jantar terminou com eles cantando a Internacional em espanhol, Saramago com a letra de Portugal, Zélia e Jorge com a brasileira. Comunistas. Recordar é viver. Mas ali comentávamos a letra retórica desse hino. Havia um toque de saudosismo e deboche. Mudam-se os tempos.

01.01.1996
Um ano de governo Fernando Henrique. Na TV, presta contas do saldo positivo. Inflação inferior a 20%, etc. Não cita a palavra “cultura”. Fala sobre educação e coisas na área social. Comento isto com várias pessoas. Fico escandalizado porque é sinal de que [Francisco] Weffort não tem a menor importância no ministério. Não tem projeto, não tem diretriz, segue as coisas que se apresentam. FHC poderia falar do plano de leitura, das bibliotecas: a FBN propôs isto no PPA (projeto plurianual) e foi aprovado. Claro, os redatores do Ministério do Planejamento apagaram no texto final.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho