31.12.1998
5h15 da tarde, tarde linda, o ano vai acabar. A TV Globo encomendou-me ontem um “texto poético” para a passagem do ano.
Morreu Lindolf Bell no princípio de dezembro, contou-me Nilza Barunde que participou da “Catequese poética”. Aneurisma. Uma veia junto ao coração. Ia ele pela primeira vez comemorar seu aniversário, que caía no dia dos mortos. Sempre comemorava em dezembro, entende-se. Alugou um hotel, reuniu dezenas de amigos. De repente, no meio da festa, foi parar na UTI. Melhorou. Piorou. Choveu o tempo todo durante o sepultamento. Só parou quando o corpo baixou à terra. O corpo do poeta tinha ficado no Teatro de Timbó (SC) — sua cidade, onde vivia, tinha sítio e galeria de arte. Prefeito e governadores vários, lá compareceram.
Lembro-me dele. Primeiro só o conhecia de efígie. Era o nosso Maiakovski segundo a imprensa do anos 60, falando poemas em lugares públicos. Lá em Iowa, com Elke, recém-casados, a gente se apresentando no Museu de Arte de Chicago — poesia visual e oral. Ele falando poemas em português e inglês. Lembro-me dele em Blumenau, eu recém-casado, levando Marina para conhecê-los. Aquela casa alemã (da família de Elke), o forno caseiro de assar pão. Lembro de Elke hospedada aqui em casa, numa temporada, quando o casamento de ambos entrou em crise. Lembro-me da homenagem que fizemos a ele na FBN, ele dizendo aquele poema sobre as “crianças traídas”. Era caloroso fraterno, amigo. Bela figura. Às vezes, telefonava lá de Santa Catarina, só para papear .
Ficamos chocados e mais vazios sem sua vida.
O ano vai terminar. Minha vida está numa de suas melhores fases: tempo para digerir as coisas, voltar-me para Marina, a casa, a literatura, arte, viagens, comer e beber.
O século que vem por aí é curiosíssimo. A revista Época faz um número especial sobre as invenções em andamento. A tecnologia é assombrosa.
03.06.1998
Roma: a caminho de Paris. Levar Marina à sua cidade, conviver com a beleza, com a boa mesa, rever o Barroco italiano. O livro Barroco, alma do Brasil virou um acontecimento. Paris, dia 18, lançamento das três traduções — inglês, francês, espanhol — 5 mil exemplares cada. No Louvre. Parte das comemorações da Copa do Mundo de Futebol. Seminários sobre o Brasil. O Bradesco, face o sucesso do livro, além dos R$ 50 mil, deu-me dinheiro para a viagem.
Andei lendo tudo que podia sobre o Barroco, mesmo depois de escrever aquele livro, porque estou ampliando-o com o nome de Barroco, do quadrado à elipse. Julgo ter descoberto algumas relações intrigantes. É um trabalho interdisciplinar. O que ocorria semioticamente no texto na cabala, na comida, na jardinagem, além de outras áreas: ciência, filosofia, urbanismo, etc.
26.07.1998
Não anotei nada da viagem. E agora é tarde para isso. Sempre a minha preguiça com o diário. Só uma coisa: Luciana Stegagno contando que foi com Murilo Mendes visitar Ezra Pound. Duas vezes. Ezra foi muito desagradável. Mal olhou para eles, nem falou com Murilo, ficou atendendo um jornalista americano. E no entanto se lembra que durante a guerra seu pai deu abrigo a Pound, acolheu-o uma noite em sua casa quando estava sendo procurado pela polícia.
Depois, ela disse: “Vocês no Brasil têm mania de Ezra Pound”.
Eu disse: “Nós não, os concretistas. Eu tenho até um ensaio, que vou lhe mandar, enfrentando a ferocidade dos concretistas — O que fazer de Ezra Pound?.
19.08.1998
Não anotei nada na Europa. Na França, sucesso de Barroco, alma do Brasil no Carrousel Du Louvre, distribuição aos 500 participantes do jantar. Dois dias depois, às 6 da tarde, autografo para 200 pessoas no Carrousel[1].
Homenagem a Betinho e Henfil no Museu do Telefone. A cada trecho da Suíte Brasil, composta por Chico Mario, eu e José Murilo de Carvalho, falávamos coisas. Falávamos sobre ele e a história do Brasil, lembrando Vieira ou Anísio Teixeira. Me lembrando de poemas, recordações, piadas, crônicas que escrevi sobre os três irmãos.
Sensação, enquanto falava, de ser um sobrevivente, de estar olhando a história atrás de um vidro. Ou: dentro e fora, ao mesmo tempo.
Governo FHC: ambiguidade. Ontem, jantar na casa de José Roberto Marinho organizado em torno do embaixador da Argentina. Hélio Jaguaribe lembrava que nosso embaixador em Genebra, Celso Lafer, diz que há políticos que são “dux”e os que são “rex”. FHC é “rex”, Antonio Carlos Magalhães é “dux”.
21.08.1998
Assistimos a Don Carlos, de Verdi, no Municipal. No intervalo, Ciléa Stoppato, que lidera a rebelião dos funcionários contra Carlos Calil, falando que queria que eu assumisse a direção do Teatro Municipal. Já havia desconversado num telefonema. Disse: “Não piso mais no Butantã”. Mas o convite me lisonjeia. E gosto do trabalho que o Calil vem fazendo.
27.08.1998
Ontem fui com Marina ao Dr. Fritz para que ela fosse operada do neuroma de Morton, no pé esquerdo. Há uns 2 anos ela foi operada da mesma coisa no outro pé pelo Dr. Meton. A operação anterior — clássica — exigiu consultas, radiografias, internação, limpeza do pé, pré-operatório, envolvimento do pé no éter, torniquete no tornozelo para evitar sangria, pois o pé é cheio de vasos. Ela, então, sentiu muita dor quando acordou, teve que usar muletas, ficou assim várias semanas.
Agora, foi chegar e tudo ocorreu em 1 ou 2 minutos Não limpou o pé, Dr. Fritz veio com luvas usadas em outras cirurgias (filmei tudo). Pegou a tesoura, deu-lhe umas marteladas no local, puxou alguma coisa lá de dentro e… pronto. Não precisava suturar. Botou gaze e esparadrapo, disse que poderia ia andando. Só não usar sapato fechado por dois ou três dias.[2]
NOTAS
[1] Assistimos num palácio antigo francês a um espetáculo da caça à raposa. Fui três vezes também à recém-inaugurada Très Grande Biblioteque (Paris).
[2] Leio isso em 2015, vou ao escritório de Marina e leio o que escrevi na ocasião. Ela me conta que a operação não deu certo, teve que operar depois com um cirugião de verdade.