Marajá, Saramago, réveillon equivocado

Queria fazer duas mil bibliotecas novas
José Saramago, autor de “As intermitências da morte”
05/10/2016

17.12.1995
Semana desagradável: o Ministério do Bresser divulga que sou um dos “marajás”[1] da República. Se fosse piada, não teria graça. Um desatento listou funcionários que ganhariam mais do que o presidente da República. Surrealismo puro: primeiro é mentira. E para o cúmulo do ridículo, estou entre os seguintes “marajás” listados pela imprensa: João Cabral de Mello Neto, Darcy Ribeiro, Heloisa Buarque. Mandei um fax ao Bresser e à Casa Civil. No dia seguinte, ele se desculpou pelos jornais. Mas é um dano irreparável para uma leitura apressada dos fatos. O que pensar das notícias que saem nos jornais? Fiz uma crônica a respeito: Eu, Marajá. Mando para dúzias de jornais além de O Globo. Roberto da Matta, indignado com a lista, dá o apoio e faz violento artigo no Jornal da TardeDa lista de Schindler à lista do Affonso.

01.01.1996
Fomos à casa de Baena Soares na Avenida Atlântica. Um equívoco. Tônia Carrero me deu o endereço do Roberto Dávila equivocado. E acabei noutro endereço, noutra festa.

Vista excelente para a praia. Lá o Bambino (Sebastião do Rego Barros), Tite (Cristina), Saraiva Guerreiro, Luís Felipe Lampreia e Ligia Marina.

Entramos no réveillon errado. Nos desculpamos, já era tarde. Ainda bem que eram todos amigos… Vou fazer uma crônica sobre essas coisas engraçadas e mandar uma carta ao Baena, que conheço[2].

30.01.1996
Depois de cinco anos, consegui que o Prêmio Camões fosse entregue em Brasília, no Palácio. Não sei quantas vezes fui ao Itamaraty, ao Palácio, ao MinC, às embaixadas falar da necessidade de se fazer isso. Agora deu certo. Saramago e Pilar felicíssimos. Pedi a ele o discurso autografado para a seção de Obras Raras da BN. Jantamos com ele, no Veccia Cuccina.

Conferência de Saramago no auditório da embaixada de Portugal em Brasília, cheíssima. Ele falando, contando sobre sua peça, sobre Camões sobre seus textos transformados em ópera. Um escritor de sucesso. Que começou aos 53 anos, quando perdeu o emprego no Diário de Notícias.

Pilar é bonita e inteligente. O jantar terminou com eles cantando a Internacional em espanhol, Saramago com a letra de Portugal; Zélia e Jorge, na letra brasileira. Comunistas. Recordar é viver. Mas ali comentávamos esse hino. Havia um toque de saudosismo e deboche. Mudam-se os tempos.

14.02.1996
Nesses dias, Marina no terraço diz às 17 horas: “Hoje, 3 de fevereiro de 1996, Affonso nunca mais terá 58 anos nem verá jamais essa tarde”. Referia-se à FBN que me devora. Deixou um bilhete com algo sobre isso escrito. E com razão. Eu vou me cansando de estar ligadíssimo, lutar como um leão, a ponto de as pessoas do meu próprio gabinete acharem que deveria trabalhar menos.

Queria fazer duas mil bibliotecas novas, informatizar a instituição, construir o Anexo, etc.

Às vezes, me desanimo. Lembro frase do Carlos Nascimento Silva ( meu ex-aluno e romancista): “Você fica aí deixando sua literatura de lado, depois vem outro e desfaz tudo o que você fez na BN”.

Olho para os três anos que faltam como um peso nos ombros. E não sei se esse o governo vai realizar o que planejei. A conversa é sempre a mesma: falta de dinheiro, equilíbrio do orçamento.

24.08.1996 até dia 31
Fui demitido da FBN por Weffort em 12.7.1996. Tinha ido para uma reunião em Brasília no MinC, com Tomás, diretor de administração da FBN. Antes houve uma conversa com a assessora do Weffort (Dely), que já sabia da demissão, mas tratou comigo das coisas burocráticas normalmente. Weffort me chama ao gabinete antes da reunião programada: aquela conversa torta, de que precisava do meu cargo. Queria que eu ficasse figurativamente mais um tempo enquanto ele arrumava as coisas. Disse-lhe: “Faço questão que me demita para que isso entre para o seu currículo”.

E na conversa, evidentemente desagradável, lhe disse: “Você não sabe da cagada que está aprontando, os planos que serão interrompidos nacional e internacionalmente”.

Ele ainda falou aquela coisa imbecil que se fala nessas ocasiões: “Espero poder encontrá-lo futuramente noutra situação”.

NOTAS

[1] Os jornais noticiaram criticando o governo: “Relação dos marajás contém erros” (JB, 16.12.95), “Ministro admite erros na lista dos marajás” (O Globo, 16.12.95), com destaque para “Affonso Romano cobra explicação de Bresser”. Jânio de Freitas na Folha de S. Paulo: “Ainda a lista falsa” e Roberto da Matta no Jornal da Tarde: “Da lista de Schindler à lista do Affonso”. Escrevi a crônica irônica “Eu, Marajá” (O Globo, 19.12.95).

[2] Ano seguinte, ironicamente, liguei parara o embaixador Baena lembrando o episódio, e ele, um gentleman, nos convidou para novo réveillon.

 

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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