Lembranças despassaradas

Aeroporto de Lisboa: catorze horas do Rio à Ilha da Madeira para um encontro sobre culturas do Atlântico
Robert Musil, autor de “O homem sem qualidades”
01/11/2013

01.05.2001
Aeroporto de Lisboa: catorze horas do Rio à Ilha da Madeira para um encontro sobre culturas do Atlântico, onde devo ler poemas e falar de minha perplexidade índia entre esses dois mundos.

Frio, dez graus, e já na escada do avião uma portuguesa dizia à aeromoça: “Está inverno! Oh, não está primavera?!”.

Sempre as sutilezas de ser/estar para gramáticos e filósofos; poetas, quem sabe?

No avião, leio uma reportagem na revista da TAP sobre a cidade portuguesa de Guimarães. Fotos. Lembranças da viagem que fiz com Marina há quase um ano a Portugal — de Guimarães até o Sul, Beja, etc. (Marina deve chegar na Colômbia, hoje, na mesma hora em que eu chegar a Funchal.)

Ponho-me a lembrar de viagens. É uma felicidade ter viajado tanto. Só lamento não ter anotado mais detalhes, fazendo o “albinho” que Pedro Henrique Paiva (meu médico) nos ensinou e que Marina, de alguma maneira, fez com a viagem a Marrocos. Ainda há pouco estava tentando lembrar da minha visita a Murilo Mendes em 1968, à sua casa em Roma. Seria via Viale, 6? Quase nada me ocorre. Quadros na parede, apartamento amplo, à tarde, a figura dele e de Saudade Cortesão palidamente na lembrança. Mesmo de quando Murilo esteve lá em casa e nos reunimos com Hélio Pellegrino, Fernando e Otto pouco me lembro, a não ser de ter posto um Mozart para tocar e da alegria dos mineiros: Otto, Hélio e Fernando indo juntos até mesmo ao banheiro, como colegiais, para fofocar. Sim, lembro-me que Marina estava grávida de Alessandra e mostrou a casa ao Fernando.

Daí essa vontade de ir anotando tudo o que me for ocorrendo. Não só porque o passado se esmaece e fico sempre à mercê de uma pessoa que me surpreende com estórias sobre mim mesmo, de que nem sei, mas também porque há uma noção de que tenho um horizonte de vida de mais uns quinze ou vinte anos (se tanto), e os quinze, vinte anos últimos passaram-me rápidos — conquanto riquíssimos, em plena maturidade, a “maturidade possível”.

Parei para reler coisas escritas anteriormente e vi pregado na página de abertura deste Quase-diário o poema de Kavafis (Ítaca) e algumas frases lidas aqui e ali. Deveria fazer um “albinho” um diário alheio, de textos que me palmilharam: isto, sim, é mais rico:

1. Flaubert sobre Balzac: “Que grande escritor seria se soubesse escrever”.

2. “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude” — O gattopardo, de Tomasi di Lampedusa.

3. Canto afegão O céu cairá sobre nós:
O céu cairá sobre nós
E ainda assim estarei por cá
Para vos amedrontar
As nossas barbas
Deixarão de ser grisalhas
E os nossos ossos
Regressarão à terra que
Os deu a nascer
Mas ainda assim cá
Estarei para
Vos atrapalhar.
Há muito que este solo
Sagrado deixou de ser
Fértil
E as nossas mulheres são feias;
Por que quereis então
Este território?

4. Anônimo:
Toda dia na África um leão acorda
Ele sabe que deve correr
Mais do que a gazela ou morrer de fome.
Todo dia na África uma gazela acorda
Ela sabe que deve correr mais que o leão ou morrer.
Quando o sol surge no horizonte
Não importa se você é leão ou gazela
Corra! 

5. Montaigne, Ensaios, livro 2, capítulo 2: “Eu digo a verdade: não tanto quanto desejo, mas tanto quanto ouso; e vou ousando mais à medida que envelheço”.

6. “Naquele momento começou uma nova era (pois começam a todo instante) e uma nova era pede um novo estilo.” (O homem sem qualidades, de Robert Musil)

7. Alfred North Whitehead, Science and modern world: “Meus dias de escrever estão terminados. Pois tais coisas me foram reveladas, que tudo que escrevi e ensinei parece de pouca importância”.

8. “Einstein morreu sem se resignar à idéia de que a verdadeira e inexpugnável glória de Deus começa onde termina a linguagem.” Luis Fernando Verissimo

Nesta viagem, por exemplo, encontrei uma reportagem sobre Charles Boxer, historiador inglês que produziu alguns dos melhores livros sobre a cultura luso-brasileira. Recortar. Anotar. Anoto esparsa e ilegivelmente nessas desparelhadas cadernetinhas. Vai ver é assim mesmo: o que sobrenada dos palimpsestos.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho