4.12.1985
Aeroporto de La Habana. Aqui estou, entre uns 20 a 30 brasileiros para o II Encuentro de los Intelectuales para la Soberania de los Pueblos de las Americas. Que nome pomposo! São, entre outros: Antonio Cândido, Frederico de Morais, Carlos Guilherme Motta, Caio Graco, Chico Caruso, Chico Buarque, Roberto Dávila, Ricardo Contijo, Pedro Oliveira, Geraldo Sarno, Heloneida Soffitti, Nélida Piñon, Reinaldo (jogador do Cruzeiro), Adélia Prado, Hélio Pellegrino, Bresser Pereira, etc. Maitê Proença, que chegou noutro vôo.
Nas ruas, encontro turistas brasileiros que conheço: Dirce Riedel, Rubens Gershman. Cuba se transfomou na “plaza mayor” da América Latina. Está fazendo (com suas distorções) o que nossos países não conseguem fazer na área da cultura: reunir os intelectuais. Pena que a discussão seja condicionada.
No jantar no palácio há certa fartura: lagostas, vinhos de países comunistas. Chamam para jantar com Fidel um petit comitê do qual fazem parte Antonio Cândido, Hélio Pellegrino, Frei Betto.
Anoto: acho que deveriam desenvolver uma campanha nacional para limpar Havana, reformar as casas. A desculpa de que todo material (por causa da escassez) está sendo utilizado no interior, não cola. As pessoas poderiam fazer isto. Não são revolucionários? Então comecem a revolução limpando suas casas. Bresser Pereira me diz que a casa de um economista, aqui do nível de Celso Furtado, é toda delabrada. Fidel com sua autoridade poderia desenvolver uma campanha nacional a favor da limpeza.
A alegação de que as casas não lhes pertence explica só em parte o descaso. Fidel deveria dizer: o bom revolucionário cuida de sua habitação. Mas ninguém fala disto, todos são complacentes, com medo de fragilizar a revolução. Este é um tema para debate: como a complacência pode virar uma cumplicidade negativa.
Temas que desenvolverei nas crônicas no JB:
1) A presença de Frei Betto, lançando Fidel y la religión, que vendeu mais de 50 mil exemplares, filas nas portas da livraria.
2) a cultura, os livros, papel contraditório de Cuba, etc.
Encontro aqui muitos “funcionários” da esquerda. Não os vejo discordar, fazer críticas. Me incomoda. Digo alto certas coisas que vão a contrapelo. Se eu embarcasse de corpo e alma, acriticamente, nesta atmosfera de esquerda, certamente teria meu nome/obra circulando mais continentalmente. Mas não me presto a esses jogos. Chico Caruso perguntou a um chargista cubano porque Fidel não aparecia retratado. Deram três razões: primeiro porque não é necessário, segundo, seria um desrespeito e, terceiro, porque não é ele que resolve todos os problemas.
Quando alguém de nosso grupo perguntou a um cubano que lhe propunha fazer câmbio negro, houve esse diálogo:
— Companheiro, você não é revolucionário? Por que faz câmbio negro?
E o adolescente:
— Sou revolucionário sim, mas quero comprar um jeans e videocassete.
Hélio Pellegrino estranhou que mesmo os loucos, na ilha, pintam quadros com estilo realismo socialista, bem diferente, portanto do surrealismo dos loucos de Nise da Silveira.
4.11.2010
Estou em Angra dos Reis fazendo a abertura do projeto Consciência Ampla Cultural (organizado por Nelson Freitas com apoio da Ampla). Respondo a perguntas dos debatedores Júlio Dinis e Victor Loureiro durante a exposição que estou fazendo sobre a trajetória de Que país é este? nesses 30 anos.
Lembrei-me de um episódio durante a ditadura: naquele tempo algumas cidades eram consideradas de “segurança nacional”. O prefeito era nomeado pelo governo federal. Pois numa cidade na Amazônia (cujo nome só posso recuperar relendo meu diário) houve uma formatura e o estudante orador resolveu ler um dos meus poemas. Deu-se mal. O comandante militar retirou-se, o prefeito suspendeu a sessão. Acabou ali a formatura.
Culpa da poesia.
Narro isto, para lembrar coisas que os mais jovens não sabem. Então, uma pessoa no auditório em Angra, que evidentemente viveu aqueles anos terríveis, disse “Angra também era uma cidade de ‘segurança nacional’”.
Desta vez, no entanto, a sessão não foi interrompida. Pude ler poemas tranqüilamente.
2.6.1985
Me lembrando que numa casa de Santana do Deserto há poucos meses, constatei algo sobre a psico-sociologia mineira. Mauro Campos e Gilse têm uma fazenda ali perto e me levaram a uma típica casa mineira colonial, restaurada. Há um quarto de hóspedes para os viajantes. Mas esse quarto não tem janela. E só tem uma porta. A chave fica com o proprietário da casa. Isto é uma prevenção: para o hóspede não deflorar as jovens ou assassinar alguém. Lenda? Seja como for, o quarto das moças dava porta para o quarto do casal: assim evitavam (dizem) que elas fugissem ou alguém ali penetrasse na alcova (ou nelas).