Guadalajara

Encontro com escritores em uma das principais feiras do livro do mundo
Eduardo Galeano, autor de “Os filhos dos dias” Foto: Eugenio Mazzinghi
01/11/2012

25.11.91
Feira de Guadalajara. Hoje, bom foi assistir à mesa redonda com Salvador Elizondo, Sergio Ramirez (vice-presidente da Nicarágua, que já tinha encontrado no Brasil) e Eduardo Galeano (que conheço de vários encontros). Como Eduardo abrisse a sessão dizendo que não lhe ocorria nada para falar, se divertindo, fazendo a platéia rir, seguiu-se Elizondo afirmando também que tudo já foi dito nas dezenas de palestras que fizeram nos últimos anos, especialmente esta manhã. Dito isto, acabaram encaminhando alguns temas. Sergio Ramirez, destoando, sério, leu um texto escrito sobre a função do escritor.

Pensei que fosse ser um porre. Mas apesar da seriedade inicial saiu-se com um texto auto-irônico, embora dramático. Contou sua infância, tipo Cinema Paradiso, somando a novela O direito de nascer, que ouvia andando pela rua da cidade, pois todas as casas estavam ligadas no drama. Depois, contou como aos 12 anos ganhou um concurso literário, cujo prêmio foram duas garrafas de rum. Aos 17, morreram-lhe dois companheiros de classe que estavam ao lado dele, num massacre de estudantes feito por Somoza. Um tinha um nome parecido com o dele: a partir daí, literatura e revolução passaram a conviver dentro dele. Em 1973 vai a Berlim estudar cinema. Volta em 75 para derrubar Somoza. Conta algo engraçado sobre seu primeiro livro: distribuiu-o ao livreiro e voltava todos os dias para conferir quantos havia vendido. Um dia, chegou lá e havia mais livros que havia deixado. Pessoas haviam devolvido alguns exemplares.

Salvador Elizondo é engraçadíssimo. Parece de porre quando fala. Brinca com o sério, a platéia se divertindo. Contou sua formação: queria ser pintor, estudou com um mestre de Guadalajara que nacionalisticamente não colocava a cor verde na pintura, pois o México, segundo ele, não tinha nada verde. Mas conseguia o efeito de outro modo, que Elizondo acabou copiando. Diz que não prosseguiu como pintor porque o outro só ensinou a imitá-lo.

Contou estórias engraçadas: de como quis ser cineasta, pois seu pai produzia filmes. Aproveitou e pediu para ir estudar em Paris, mas como já sabia tudo o que queria, ficava vagabundando. Falou de uma coisa curiosa: seu projeto de um cinema psicológico. Filmavam um ciclista em movimento e registravam as reações de seu cérebro durante o exercício. Passavam o filme e punham na cabeça das pessoas na platéia o aparelho – e o espectador, só de ver, sentia (e a máquina registrava) as mesmas reações cerebrais do ciclista.

Ah, sim, Ramirez contou uma estória muito louca e carnavalizada sobre o poeta nicaraguense Rubén Dario. Quando este morreu, um médico resolveu pesar o cérebro do poeta para saber se era mais pesado do que o de Stendhal; enfim, queria conferir qual o segredo da criatividade de Rubén. Por causa disto, o cérebro acabou sendo levado pela multidão delirante que reverenciava assim o ídolo nacional.

À Galeano, depois das brincadeiras iniciais, lhe tocaram coisas mais sérias. Perguntaram-lhe sobre política. Ele se saiu bem. Se bem que é difícil responder sobre Cuba hoje. Fiquei pensando no que eu responderia: acertos e erros. Ele, não. Teorizou emocionado sobre coisas em que crê, e disse abruptamente, terminando, que Cuba era um símbolo da dignidade na América Latina.

É mais complicado. Antes da sessão, conversei com Galeano, que me deu de novo seu endereço dizendo que o visitasse em Montevidéu daqui a 15 dias.

26.11.91
Feira de Guadalajara. Sobre a questão de Cuba levantada ontem na sessão do Galeano. Penso que como intelectual não viveria lá. Foi importante visitá-la em 1987. O intelectual que vive em Cuba tem duas alternativas: ou se mutila intelectualmente (falta de liberdade de expressão, impossibilidade de ler, viajar) ou se revolta. E aí?

Parece-me que a nossa má consciência funciona assim: como não suportamos a injustiça social em nossos países, ao ver o problema básico resolvido em Cuba, ficamos satisfeitos. Voltamos aos nossos países divididos inconscientemente: elogiando o avanço social, mas preferindo a liberdade de expressão em nossos países.

A questão colocada por um ouvinte sobre a “direitização dos intelectuais” está equivocada, porque há a “esquerdização dos intelectuais” que faz com que achemos que somos melhores. Seriam os dois milhões de cubanos em Miami todos canalhas?

A questão da “maioria” não pode ser superior à questão da justiça. A maioria volta e meia se equivoca, vide nazismo, fascismo e comunismo. “Verdade”, “maioria”, ”minoria” são questões complicadas.

Folheei na Feira, ontem, o Vida de Jesus de Hegel, que não conhecia. É isso, o homem era fascinado por esse personagem. Repete, parafraseando, as estórias todas do Evangelho. Estranho fascínio do mítico sobre o filosófico.

Folheei também o livro de Benjamim sobre a Rússia. Ele esteve lá, em 1926, lá passou um ano. Seria interessante alguém fazer um estudo sobre os livros e impressões que os ocidentais tiveram do comunismo russo. O livro de Benjamim é um Diário de Moscou. Num tom prosaico, cotidiano, pessoal, contando as pequenas coisas do cotidiano.

Nos próximos dias lançarei com Marina o nosso livro 1991: estávamos em Moscou (Melhoramentos), relatando como fomos para as ruas participar da perplexidade do povo, correndo perigos vários, quando acabou o regime soviético.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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