Glauber, Foucault, Boff, Prestes…

Enterrado Glauber Rocha ontem. Veio um dia antes de Portugal já muito ruim. Jornais noticiando nas primeiras páginas
“Um homem o conduziu ao carro onde uma mulher os esperava. Tudo parecia altamente confidencial e perigoso. O filósofo entra no carro.”
01/02/2010

24.08.1981
Enterrado Glauber Rocha ontem. Veio um dia antes de Portugal já muito ruim. Jornais noticiando nas primeiras páginas. TV alardeando. Silvio Tendler filma o morto como ele, Glauber, filmou Di Cavalcanti morto. Todos dão entrevista, discursam beira túmulo, falando de “assassinato cultural”. Gustavo Dahl, Arnaldo Jabor, Darcy Ribeiro, Luis Carlos Barreto e outros repetem este tema que o próprio Glauber usou quando morreu sua irmã Anecy, argumento que na Itália usaram quando morreu o poeta/cineasta Pasolini.

No enterro, Lúcia Godoy canta a belíssima bacchiana número 5 de Villa-Lobos que Glauber usou num de seus filmes. Enterram-no de poncho, como um latino-americano, mais bandeira do Brasil e bandeira vermelha/negra de Terra em transe — seu filme de que mais gosto.

Exposto o corpo no Parque Lage, cenário de Terra em transe, tudo parece, enfim, mais um filme de Glauber Rocha. Os discursos emotivos e retumbantes parecem-me exagerados. Era um artista de talento, não era um gênio como dizem. E sua morte não foi política. Ele se matou psicologicamente, até não cumprindo as indicações médicas. A neurose o matou. Isso de responsabilizar o país por sua morte não é certo. O país era, ao contrário, a sua vida, isso sim. Mas há tal desorientação e impotência política no país que se tenta (e até se justifica) a politização da morte de Glauber.

Ah! essa vocação dramática, grotesca, patética, tropical…

23.05.1985
Ontem belíssima cerimônia no Colégio Bennett em solidariedade aos irmãos Leonardo e Clodovil Boff, censurados pelo papa João Paulo II (e pelo cardeal Ratzinger). Hélio Pelegrino, Zezé Motta, Roberto Dávila, Waldo César, encabeçando o ritual. Umas 40 pessoas no palco representando várias entidades. Platéia lotadíssima. Fui lá também convidado para ler o poema Eppur si muove, escrito sobre o incidente dos Boff com o papa, já publicado no JB. Hélio Pelegrino, num de seus arroubos, me anunciando como “o nosso Maiakovski”. Obrigado (…). Tudo muito comovente. Falaram líderes sindicais, cientistas, pastores, padres, sobretudo a líder das prostitutas — Gabriela Leite, sobre quem farei uma crônica. Ela se quebrou em prantos no meio da fala. O auditório todo, de pé, a aplaudiu. Choramos. Chorei.

04.10.1986
Não sei por que me deu vontade de registrar que outro dia, pela primeira vez, estive ao lado de Prestes, numa festa para a viúva e a filha de Allende (Chile).

Curioso estar no mesmo espaço do mito. Mas não conversamos.

Nem havia por quê.

27.06.1984
Há dois dias morreu Michel Foucault. Foi um choque. Lembrei-me dele aqui em casa naquele jantar e de quando o trouxe para conferências na PUC/RJ, em 1973. Pessoa tão viva, atraente, correta. Se vivesse até os 80 nos teria sido ainda mais útil. Pego agora a edição espanhola das conferências que ele fez aqui na PUC/RJ. Lembro-me de várias coisas: ele chegando ao Rio e a gente não sabendo onde ele estava, pois se adiantou e fez questão de não dar pistas. Uns dizendo que ele tinha um amante brasileiro na Lapa. Aquela cena estranha: no dia em que ele ia iniciar suas conferências, alguns alunos de filosofia abordando-o e a mim, na entrada do RDC, para dizer que não podiam assisti-lo porque não tinham como pagar a entrada… Foucault se dispôs a falar para eles depois, de graça. Mais tarde, no jantar em minha casa, constrangido dizia que os estudantes o levaram para uma rica cobertura em Ipanema e que o papo de falta de dinheiro era falso.

Outra história: Lea Novais, sua intérprete, me disse: — Alta noite, um casal, misteriosamente, vai procurar Focault no Hotel Sol Ipanema. Ele pensa que é algum recado político para exilados, pois vivíamos numa ditadura, e como da portaria recebeu o recado de que era “confidencial e urgente”, ele se veste e desce.

Um homem o conduziu ao carro onde uma mulher os esperava. Tudo parecia altamente confidencial e perigoso. O filósofo entra no carro. Finalmente, indaga de que se trata? E o homem diz:

— Monsieur, qu’est-ce que c’est l’estructuralisme?

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho