Fragmentos de Aix-en-Provence

Emoções, descobertas, poema finalizado e artigo sobre a Guerra das Malvinas em solo francês
01/07/2010

19.04.1982
Aix-en-Provence. Estou jantando e resolvo ligar a TV. Outra emoção que a TV francesa em mim despeja: uma hora e meia sobre a vida de Toscanini. Lindo. Seus problemas com os fascistas italianos. Por duas vezes interromperam seus concertos querendo que ele executasse o hino fascista, e ele sempre se negando. Até que um dia o agridem no caminho do teatro, quando, ao ser abordado, de novo se recusa a executar tal música. Em conseqüência de seus ferimentos naquela noite não houve estréia.

Fico sabendo que também até Hitler, além de Mussolini diretamente, tentou aliciá-lo, e ele recusou todo tipo de convite até que teve que se exilar nos Estados Unidos. E o belo episódio de sua ex-orquestra (em Londres ou USA?) que resolveu dar um concerto em homenagem a ele, mas sem o maestro presente, mostrando que sabiam de cor todas as suas lições. Lindo. Eu ouvia, e chorava. Várias vezes.

24.04.1982
Hoje aprendi que na Mauritânia, país africano, até no ano passado ainda havia uma lei regulamentando a escravatura. Exatamente. E mais: que as mulheres e homens são altos, mas muito magros, pela falta mesmo de comida. Então, quando um homem escolhe uma mulher e casa com ela, a família a leva para um lugar separado e durante um ano pelo menos a alimenta à força com leite de camela até que ela fique uma verdadeira broa.

28.04.1982
Escutando rádio e eles sempre falando de literatura. Agora me veio uma boa imagem/idéia sobre a relação do francês com sua literatura: é uma religião profana. Flaubert, Baudelaire, Victor Hugo, etc. são os santos. Realizo isto agora tentando me explicar esse fascínio que eles têm pelos seus autores. Na France Culture a qualquer hora do dia e quase todo programa de TV, e mesmo os indivíduos comuns, que não vivem de literatura, quando mencionam qualquer autor falam como se falassem: Santo Antônio, São Pedro, Santo Agostinho, etc. E isto: no imaginário a literatura cria também hierarquias e sacralidades. Sem a literatura a França não se saberia como se sabe.

(Nota: em Paris existe o Panteon dos heróis da pátria, entre os santos mártires, vários escritores).

01.05.1982
Assisto ao filme Maupassant de Michel Brac. O filme é meio chato, retratando suas orgias, cenas de amor a três, lesbianismo e a loucura crescente do escritor. Conflituado com a mãe, seguido pelo fantasma do pai violento e de seu “pai” Flaubert, acaba no manicômio. Curioso: não sabia, alude-se à amizade entre sua mãe e Flaubert e que este seria seu pai verdadeiro.

06.05.1982
Le Monde publica um artigo meu sobre a guerra das Malvinas, que está rolando há várias semanas. Mandei-o há 20 dias.

09.05.1982
Terminei o poema Os homens amam a guerra ou O último tango nas Malvinas. Trabalhei nisso uns dez dias, creio. Devo ter jogado fora umas 60 ou 80 páginas de rascunho. Passei várias noites escrevendo o texto, como um sonâmbulo: caderno e caneta ao lado da cama, eu acendendo uma pequena lanterna várias vezes para escrever mesmo deitado. Anotações enquanto o inconsciente dorme e/ou aflora ritmos, sensações. Tinha, como me ocorre várias vezes, o objetivo visual do texto: uma página de jornal. A visualização do jornal, o fato de que tenho que usar uma linguagem direta e emocional. O menos literária e intimista. E a criação, a descoberta de um certo ritmo estruturador do poema. Que este é o grande problema da poesia moderna: a contínua criação de uma nova estrutura em cada poema.

Hoje li O último tango nas Malvinas na última aula que dei para a turma de lincenciatura. Foi bonito. Pascale Brette, a mais simpática e inteligente de todas, veio emocionada pedir que alguém o traduzisse e publicasse no Le Monde.

Acabei adotando a técnica das fichas como fiz com A grande fala do índio. Descobri um modo pessoal de trabalhar. Vou trabalhando em torno de certos núcleos de imagens. E quando cada azulejo está pronto vou acumulando. Depois disponho as fichas sobre a mesa ou chão e então escolho durante dias a melhor ordem, refaço as ligações, reencontro as dobradiças do ritmo e do discurso.

16.05.1982
Fui à casa de Raymond Jean (que havia mandado recados depois que saiu o artigo no Le Monde), onde reuniu alunos da China, Japão, Coréia, Síria. Simpático, sua casa na campanha. Entardecer. Paz. O quadro é o do intelectual francês, tranqüilo em suas funções sem os atropelos nossos “lá-bas”. Deu-me, ao fim, depois que os estudantes saíram, dois de seus livros — Lês Deux Printemps, no qual romanceia sua experiência na primavera de Praga e em Paris, e La Fountaine Obscure, romance sobre um fato histórico de feitiçaria na Provence do século 16. Suas posições contra o Partido Comunista Francês, apesar de pertencer a ele, são boas, e raras, dentro do quadro francês. E ele conta como o PCF o censurou, não só em críticas escritas, mas boicotando seu livro, que nunca aparecia em noite de autógrafos do partido.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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