FHC na Bibliotica Nacional

Parecia um encontro de geração, trinta anos depois: a esquerda no poder
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
28/08/2016

30.12.1994
Chegou convite para transmissão do cargo de Luiz Roberto para Francisco Weffort. Este começou mal. Vamos ver. Reuniu-se com pessoas erradas. Parece desinteressado. Digo à Celina Amaral Peixoto e ao Celso Lafer: ele não tem projeto de cultura e parece não querer se informar.

08.01.1995
Posse de Fernando Henrique: vou via SP. No aeroporto, encontro toda a tribo paulista no saguão: Marta e Eduardo Suplicy, Roberto Campos, Ricardo Kotscho, Franco Montoro e outros, todos carregando “smoking”. Em Brasília (Marina não veio), encontro tout le monde: Da Matta, Cravo Albin, Alberto da Costa e Silva, Bambino e Cristina, Sergio Telles e mulher, Carlos e Cristina Garcia, Danda Prado. Parecia um encontro de geração, trinta anos depois: a esquerda no poder.

O governo Fernando Henrique começa muito devagar. A imprensa, passada a primeira semana, acusa-o de fazer “seminários”demais.

21.01.1995
O presidente na FBN. Fernando Henrique foi à FBN acompanhado de Dona Ruth, Weffort (ministro) e Marcelo Alencar (governador). É o segundo presidente que recebemos. O primeiro foi Collor, quando começou a fazer as pazes com a cultura e os intelectuais, sendo Rouanet então secretário da Cultura. Itamar não foi possível. Visita tranquila, relaxada. Dividida em três partes. Peguei-o no passeio público quando chegou pontualmente com Ruth, às ll horas, mostrei-lhe a fachada refeita, entramos no salão recém-reformado, apresentei-o ao Joaquim Falcão (Fundação Roberto Marinho) e Ricardo Gribel (banco Real), que possibilitaram a reforma. Falei-lhe, enquanto caminhava, algo sobre a história da biblioteca. Depois fomos ao 4º andar onde o esperava a minha diretoria para uma conversa de quinze minutos, para falar de projetos, mostrar-lhe alguns livros. Embora o protocolo mande que ele sente na cabeceira, nos sentamos, com os outros, face a face. Mostrei-lhe o livro que editamos sobre a Feira de Frankfurt; contou que passando pela Alemanha visitou duas das nossas exposições: de arte primitiva e de arte negra.

Ruth sempre simpática, autografando seus livros, ela e FHC e Weffort, para a Seção de Obras Raras. FHC e Ruth (e os paulistas em geral) não conheciam a Biblioteca Nacional. Depois fomos aos grandes armazéns, vários andares de livros, uma visão que deixou a todos encantados, a verdadeira Biblioteca de Babel sonhada por Borges. Marcelo Alencar (governador) perguntando por que não abríamos essa parte aos leitores (coisa tecnicamente impossível). FHC perguntando sobre o peso daqueles andares todos de livros e eu brincando que agora temos uma moeda de peso — o real, piada que ele repetiu para os demais.

Depois de tomar uns sucos, fomos para a Seção de Obras Raras onde estavam também “raros” convidados especiais, representando áreas diferentes da cultura: Ana Botafogo, Cacá Diegues, Luiz Schwarz, Sérgio Machado, Ênio Silveira, Tônia Carrero, Mário Machado. Dona Ruth logo descobriu Marina que havia sido sua colega no Conselho das Mulheres nos anos 80. O presidente pôde conhecer o projeto de digitalização da fantástica coleção de mapas antigos, experimentou computadores que executam as partituras das músicas que temos em nosso acervo.

Ficou meia hora a mais do que o previsto, tudo tranquilo, ele fazendo um discurso final de agradecimento. Foi importante sua visita. Tem um valor simbólico. Colocar o livro/leitura/bibliotecas no centro da política do governo — essa é minha intenção ao trazer autoridades federais aqui.

Visitei Roberto Marinho para lhe dar nosso livro sobre a Feira de Frankfurt, agradecer seu apoio e conversar sobre coisas. Ele gosta de pedir ideias. Falei da necessidade de ter uma TV bilingue, espanhol/português, a partir da experiência do Mercosul e do que vi na Alemanha[1]. Falei também que seria interessante retransmitir o Jornal Nacional pela CBN.

Sempre gentil, acolhedor, pedindo para não chamá-lo de “doutor”, só de “você”, contou, de novo, o caso de seu início n’O Globo, a morte do pai, ele tendo que assumir tudo aos 20/21 anos. Contou a mesma coisa em 40 minutos de conversa.

Contou-me do jantar com JK, em sua casa no Rio, quando perguntou ao presidente por que estava fazendo Brasília tão longe. JK disse que aqui não havia espaço. E Roberto Marinho descreveu-lhe que estivera com os filhos na Barra-Recreio pescando camarões e que ali havia lugar suficiente para uma nova capital, mas não teve jeito.

06.02.1995
Em Friburgo, com Marina, pela primeira vez na vida, passando dez dias seguidos aqui. Avisei na FBN, avisei ao Weffort que, após quatro anos, ia tirar uma semana de férias. Maravilha. Até a poesia está voltando depois de quatro anos. Retomei papéis de uma pasta. Que felicidade é mexer nesses textos, ainda que para nada, ainda que não os publique. Fiz-me um bem imenso mexer, remexer, retomar meus movimentos de alma, minhas pequeninas fantasias e indagações.

NOTA

[1] Ver “Televisão, língua e cultura”, O Globo, 27.12.94.

 

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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