Fernando, Otto, Hélio e Paulo

Na noite da sexta passada, uma reunião no apartamento onde Lya Luft agora está vivendo com Hélio Pellegrino
Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos
01/01/2012

08.09.1987
Na noite da sexta passada, uma reunião no apartamento onde Lya Luft agora está vivendo com Hélio Pellegrino. Otto Lara Resende fez-me queixa de que eu sempre o desprezei. “Imagine, minha filha”, penso eu. Em seguida, ambos já meio de porre, partimos para o estardalhaço amoroso, nos fazendo juras de amizade. A efusão era tanta que quebrei um copo de baccarat vermelho de uma bela coleção de Lya Luft. Hoje nos telefonamos e nos divertimos com nossos remorsos pelo sucedido e pedido de desculpas mútuas. Gosto muito do cinismo franciscano do Otto. Sofre como o diabo, porque necessita ser amado por todos.

03.04.1986
De repente, pego, por acaso, o livro Poemas, de Paulo Mendes Campos, e me surpreendo com a qualidade de vários deles. Vou escrever-lhe uma carta. Se assustará. O livro não é novo, é de 1979. Ele foi prejudicado na sua trajetória por vários fatores, como a dispersão boêmia e alcoólica. Mas um dos motivos foi o Concretismo. Lembro-me das críticas de Heitor Martins e Mário Faustino no Suplemento Literário do Jornal do Brasil quando saiu O domingo azul do mar. Foram arrasadoras. Cortaram o vôo do poeta. Ele tem lances de grande poeta, como em Infância e Poema didático. Às vezes, lembra Drummond. E lembra também a dicção da poesia inglesa, não fosse ele tradutor de T. S. Eliot e casado com uma inglesa. Tem uns poemas sobre o cotidiano e o Rio excelentes. Exemplo: Litogravura, descrevendo o bonde bêbado como uma fera na jaula dos trilhos.

01.02.1987
Fernando Sabino, depois que se entusiasmou com meu artigo O que fazer de Ezra Pound (publicado no Jornal do Brasil e Jornal da Tarde) me emprestou The roots of treason: Ezra Pound and the secret of St. Elizabeths, de E. Fuller Torrey. Um pungente relato da vida desse diabólico pobre diabo. O final, relatando sua decadência, nos ensina a repensar o sentido da vaidade da criação.

23.03.1988
Quando Rubem Braga me ligou nesta manhã anunciando a morte de Hélio Pellegrino, eu estava assentado para escrever a crônica para o JB. Diante desta notícia todos os demais fatos e temas de crônicas são desimportantes. Olho os objetos na minha mesa, contemplo essa lagoa à minha frente, essa manhã radiosa que não prenunciava morte alguma. Olho as plantas do terraço. Revejo na memória encontros, conversas com Hélio. Vejo na estante aquele livro que me emprestou sobre a inveja (de Melanie Klein).

E sem saber se isso é prosa ou poesia, começo uma crônica tentando contrastar o minuto anterior à notícia e o choque que a perda produz: “Nesta límpida manhã de março o telefone ainda não anunciou a morte do amigo. A lagoa e as montanhas sabem já que algo morreu longe de mim e, no entanto, disfarçam a notícia numa cumplicidade azul”.

30.11.2011
Bernardo, filho de Fernando Sabino, me leva a Betim (MG) para uma grande exposição sobre a obra do cronista. Pede-me que conte estórias sobre o pai. (Eu o conheci primeiramente em 1958). Hoje, num auditório lotadíssimo dentro da prefeitura, ao lado de Guilherme Fiuza, que vai dirigir O menino no espelho, conto coisas engraçadas que sei sobre Fernando. Ele mesmo se divertia contando que quebrava jarrões chineses em coquetéis. No dia em que me dei conta que além de Sabino seu sobrenome era Tavares, ao lhe telefonar, perguntava: — É da Casa Tavares? E ele respondia: — É do Açougue Romano?

Vou fazer uma crônica contando aquela estória engraçadíssimna de como Neruda levou para o apartamento de Fernando (recém-casado) um bando de boêmios famintos que bagunçaram o almoço de gala que ele queria oferecer ao poeta chileno.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho