26.07.1991
Estranha e infeliz experiência: venho de Campinas (Unicamp), do 8° Cole (Congresso de Leitura do Brasil), promovido pela Associação de Leitura do Brasil. Uma mesa redonda com Letícia Mallard, Samir Maserani e outros. Quando fiz minha exposição sobre a prática da leitura (não a teoria), sobre o que estamos fazendo na Biblioteca Nacional, houve uma estranha reação.
Eu havia optado por dar dados reais: as bibliotecas dos 5 mil Ciacs (Centro Integrado de Atendimento à Criança) a serem construídas (fomos nós que fizemos o projeto revolucionário de uma biblioteca moderna nesses centros integrados); o Proler (Collor já aprovou, com dois milhões de dólares); das campanhas várias (como o acordo com os produtores de papel, livro, etc., que devem compor um fundo de 1%), etc. E falei do projeto “Teatro do texto”, das revistas e publicações em várias línguas que a BN estava fazendo. Projetos de exportação da literatura brasileira, etc.
Aí começaram a chegar perguntas, metade das quais ressentidas, patrulhadoras, agressivas. Eu dando dados concretos das mudanças que estávamos fazendo na cultura do livro, e a horda petista, irracional, relutando.
De repente, uma infeliz me faz um aparte demagógico (que foi aplaudido), distorcendo tudo o que eu falei, tipo: “O ARS acabou de anunciar que não há mais problemas no Brasil! Mas e os pobres? E os miseráveis?”, dizia, fazendo um típico comício.
Diante disto, respondi: “Uma das características da democracia é que as pessoas podem falar as bobagens que quiserem, como acabamos de ouvir, mas, por outro lado, também têm que, democraticamente, ouvir as respostas”.
Tive que, até o final — apesar dos aplausos aqui e ali e do apoio —, ser agressivo, lutar contra a corrente. Eu tinha caído num reduto de militantes irracionais. Disse-lhes, então, que me sentia como Oswaldo Cruz, tendo que vacinar o povo contra a sua vontade, que eles ali estavam se rebelando contra a vacina da leitura. E repeti que quem estivesse me patrulhando estaria patrulhando também o livro e a leitura.
Triste. É o imobilismo ideológico. Analiso o sucedido: 1) ficam furiosos de ser um governo adversário que está propiciando essas mudanças; 2) sentem que estamos tirando-lhes as razões de se queixarem. Quando lhes dou tudo com o que sonhamos (um plano nacional de leitura e uma política do livro), ficam atordoados, porque foram surpreendidos pelo novo.
Contei-lhes o episódio de Mulungu (que narrei em crônica, sobre o funcionário de meu prédio perguntando se a sua longínqua Mulungu, na Paraíba, merecia, poderia ter uma biblioteca), contei coisas, dei dados concretos. E quanto mais eu dava esses dados concretos, percebia, mais ficavam perplexos.
Curiosamente, alguns me cobravam “o poeta” (onde está o poeta ARS?), como se o “administrador” os incomodasse ou um abolisse o outro. O que seria isso? Querem o nefelibata? O que fala mas não necessita agir? Ao me perguntarem se eu havia encostado o poeta e o professor que sou, respondi: “Agora trabalho para que outros possam ler e escrever”.
Fico desanimado. Primeiro, a burocracia; depois, a incompetência e a preguiça, e a isto se soma a torcida do contra fazendo tudo para o país não dar certo. Assim o fracasso público serve para justificar o fracasso privado de cada um. Luís Milanesi, que trouxe para coordenar do Sistema Nacional de Bibliotecas, contou ter enviado 253 cartas para bibliotecas, perguntando se queriam o programa “O escritor na cidade”, que era gratuito para eles. Só 50 responderam. Mesmo assim, algumas dizendo que não tinham espaço para isto. E Milanesi perguntava de novo: “Não há um clube? Qualquer salão? Mesmo uma funerária onde possam se reunir?”.
Os jornais anotaram: “Do presidente da FBN, ARS: ‘Descobri que na administração pública a roda é quadrada e a gente tem que mesmo assim fazer a carruagem andar, como se a roda fosse redonda’”.