Drummond, Adélia, Guilherme

Visita à casa de Drummond para conversar com Pedro — o neto — a respeito do livro iconográfico sobre CDA, com texto e organização meus, a ser editado em São Paulo
Carlos Drummond de Andrade. Foto: Cezar Loureiro
02/01/2015

01.11.1987
Visita à casa de Drummond para conversar com Pedro — o neto — a respeito do livro iconográfico sobre CDA, com texto e organização meus, a ser editado em São Paulo. Emoção já de andar naquelas proximidades onde morava o poeta… Depois, a portaria e o elevador. O elevador subindo e eu pensando: por dezenas de anos Drummond subiu aqui — com que pensamentos? Quais necessidades? Solidão? Eu na “caixa” dele, com ele. A porta do andar: o espelho dourado onde ele se mirava ao chegar. Batia para abrir a porta?

Lá, encontro o neto Pedro e a viúva Dolores, que vem apoiada numa bengala mas forte e bem falante. E Octávio Alvarenga. Eu sem querer invadir, passar dos limites. Não profanar.

Ali, o sofá. Nos sentamos a tagarelar. Dolores contando que viveu com o poeta durante 62 anos — cinco de namoro; que ela era de Mar de Espanha e viveu na Rua Direita, em Juiz de Fora. Expliquei-lhe o sentido do nome Mar de Espanha: lá, a rua central é pavimentada de mármore de Espanha.

Dolores se levanta com ajuda da bengala, mostrando orgulhosa o quadro O negro, de Portinari, que, diz, precisa ser restaurado. Passeia entre os móveis e por tapetes antigos (sem ostentação), diria que de classe média decadente.

Pedro conta do tombo do poeta quando foi homenageado na Biblioteca Nacional. Teria tido um pequeno desmaio? Sentiu-se humilhado? Depois, outro tombo, na noite de 31 de dezembro, ali perto da rua Gomes Carneiro, Arpoador — e o susto de toda a família que com ele estava.

Em seguida me levaram ao seu escritório. Ficamos os quatro ali, conversando: abrem livros, arquivos, pastas, o fichário, etc. Eu estive ali há vinte anos. Fazia minha tese, Drummond me recebeu, emprestou-me todas as críticas literárias sobre ele. Eu estava morando na rua Montenegro (hoje Vinicius de Moraes) por um semestre, e Drummond me emprestou todo o seu arquivo para estudo e consulta. Eu pensava em terminar a tese rapidamente, mas acabei indo trabalhar com o Fernando Gabeira na pesquisa do Jornal do Brasil, e só terminei o estudo nos Estados Unidos, um ano depois. Na ocasião, Drummond me ofereceu um suco qualquer. Só o incomodei outra vez, para devolver, daí a meses, o material.

Pedro diz que as cartas de Maria Julieta, sua mãe, para Drummond e Dolores formam pilhas e pilhas. Diz de coisas inéditas (os poemas eróticos).

O poeta tinha poucos livros. O quarto-escritório é pequeno. Ele dava/jogava fora quase tudo que recebia.

Vi alguns santos de Alfredo Duval. Devo voltar noutra ocasião por causa do livro em andamento.

02.12.2010
Ontem, na Faculdade Pitágoras, em Divinópolis (MG), ocorreu algo raro e lindo. Adélia Prado, com quem, ainda na estrada, tinha falado por celular de manhã, apareceu na minha conferência. Chegou atrasada porque estava recebendo uma medalha da prefeitura de Divinópolis, e aí se sentou lá atrás. Interrompi minha fala, saudei sua entrada, todos a aplaudiram. Ela continuou lá no fundo.

A palestra ia de vento em popa quando Adélia não resistiu e resolveu fazer intervenções. Aí foi lindo, porque virou um concerto a duas vozes, e o público, que já estava ligadíssimo, entrou em júbilo total.

Depois, saímos com Marcelo Andrade, Débora Coghi e o motorista José Geraldo para um restaurante português que a poeta indicou. Estava vazio e nos botaram lá em cima, sozinhos. Adélia recomendou um “bacalhau ao Zé do Pipo”. A noite foi descontraída e a poeta estava comunicativa, falante.

Coisas interessantes a anotar:

Adélia disse, de novo, que acredita na ressurreição da carne. Perguntei-lhe como, com que corpo? Velho? Antigo? Ela acha que é com esse mesmo, mas bonito. Acredita mesmo.

No dia seguinte passamos por sua casa. Zé nos esperava na varanda. Entramos: tudo informal, mineiro, caseiro. Na parede, fotos de família; uma preciosa: do casamento de Adélia (vinte e poucos anos, bonita) com Zé (um partidão; era funcionário do Banco do Brasil), eles saindo da igreja, uma porção de gente em torno, com aquelas roupas dos anos 50/60. E os dois andando na frente, felizes. Tipo boda campestre nos trópicos.

Conversamos sobre assuntos vários: família, filhos. Ela contou que está estudando física quântica com Zé, com um professor particular. Na saída, seu marido me diz que o professor é que paga para dar aula — ou seja, vai lá porque gosta — e que há outras pessoas que participam.

04.02.1996
Visita a Guilherme Figueiredo, que me mostrou seu acervo e prometeu doá-lo à Biblioteca Nacional. Vejo seus arquivos: caixas que está usando para terminar sua autobiografia. Fala-me da morte com naturalidade: “Quando botar o ponto final no livro, posso morrer”.

Alba, sua mulher, estava na sala ao lado lendo jornal e vendo TV, com roupa doméstica. Fazia um calor danado. Contou-me coisas que já esqueci. Pena. Sinto-me um agente funerário escrevendo crônicas.

06.12.2014
Encontrei hoje, no shopping Rio Sul, o filho de Guilherme Figueiredo, Marcelo, que se apresentou a mim e a Marina quando comprávamos umas camisas.

“Que prazer!”, lhe disse. “Estou me lembrando de quando fui à casa de seu pai negociar a ida dos arquivos dele para a Fundação Biblioteca Nacional. Mas isso não foi possível, porque meu sucessor era inimigo de seu pai.”

Diz-me agora Marcelo que finalmente (quase vinte anos depois) o arquivo vai para a UNIRIO, universidade que Guilherme dirigiu. Marcelo viveu em Paris e conta que o pai se arrependeu muito de não ter aceitado a função de diplomata na Unesco.

Alguém poderia reencenar as peças de Guilherme. Ele teve uma vida intelectual intensa. Era um grande contador de histórias.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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