Cinqüenta anos de poesia

Em 50 anos de vida literária, vi coisas de que nem Deus mais duvida
O crítico Antonio Candido
01/12/2012

26.10.2012
Há 50 anos (em 1961) estive aqui em Assis (SP), assistindo ao II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária. Hoje tenho 75 e o professor Benedito Antunes me convidou para fazer a conferência de abertura. Antes de minha fala, passam um vídeo com Antonio Candido, hoje com 94 anos e uma bela memória; na época, tinha 43 anos e já era um clássico. Ele foi um dos organizadores daquele congresso. Naquela época, o concretismo estava no seu auge, apesar da cisão neoconcreta (que em poesia não produziu nada relevante). Em 50 anos de vida literária, vi coisas de que nem Deus mais duvida. Sintomaticamente, todos os comentários sobre o concretismo neste encontro referem-se a ele como uma coisa passada.

Où sont les neiges d’antan?

Olhando o ontem e o hoje, apresentei um depoimento histórico, uma revisão crítica da poesia nesses 50 anos. É a vantagem de ter mais de 21 anos. Por temperamento e por opção, participei de muitas coisas: ajudei a organizar a Semana Nacional de Vanguarda, em Belo Horizonte, em 1963); fundei o Centro Popular de Cultura, ligado à União Nacional de Estudantes, em Belo Horizonte; publiquei nos três números históricos de Violão de rua; colaborei com o grupo vanguardista mineiro Tendência; e apresentei uma tese no encontro nacional do Movimento de Cultura Popular em Recife, em 1963, quando Arraes era prefeito e Paulo Freire botava seu método de alfabetização em ação.

Como diria uma canção americana: Those were the days, my friend!

Naquela época, achava (ingenuamente) que podia dialogar com grupos divergentes. E estava certo. Eles é que estavam errados em seu radicalismo. Como veria escrito em Sócrates mais tarde: a verdade não está com os homens, mas entre os homens. Quer dizer: tinha uma visão, uma experiência diferenciada e, como se dizia na época, uma visão dialética do que se fazia. Por isto, para o bem ou para o mal, estive metido em uma série de eventos que marcam nossa poesia. Sou um sobrevivente. Mas devem ter me convidado também por uma questão de ordem alfabética, como ocorria nos exames orais do colégio.

O fato é que naquele tempo todo mundo era revolucionário, tanto os “formalistas” quanto os “conteudistas”. Mas na hora em que tocaram fogo no prédio da UNE, na hora do pega pra capar, os “conteudistas” é que foram torturados e exilados. O sistema não via perigo nos “formalistas”. Examinei isto na minha conferência e tratei de duas ilusões perdidas por minha geração: a vanguarda e a revolução.

No saguão de outro prédio da Faculdade de Letras de Assis, vejo as fotografias de todos nós naquele congresso. O Brasil vivia tempos de agitação: Jango, parlamentarismo, urgências de reformas de todo tipo, guerra fria, Cuba- crise dos mísseis. A esquerda achava  que estava próxima do poder e ninguém previa 1964 ou 1968. Falava-se muito de “rupturas”.  Falar de rupturas hoje soa algo seródio, sobretudo quando a pós-modernidade recomenda a cópia, a paráfrase e apropriação. Aquela era uma geração de utópicos, E a utopia, como disse num poema, é uma arma de três gumes,

Quando me convidaram para essa conferência, revi os “Anais”daquele congresso e ali topei com um cemitério de nomes e lembranças: ubi sunt ? Onde estão Soares Amora, Jorge de Sena, Haroldo de Campos, Wilson Martins, Anatol Rosenfeld, Alexandre Eulalio, Adolfo Casais Monteiro, João Alexandre Barbosa, Neif Safady, Helcio Martins, Affonso Ávila, Segismundo Spina, Francisco Assis Barbosa, Braga Montenegro, Wilson  Cardoso, Paulo Hecker Filho?

Ubi sunt qui ante nos fuerunt? Estãotodos dormindo, dormindo profundamente.

Onde foram parar todas aquelas flores?

Estava você lá quando crucificaram Meu Senhor?

Ou como diria Homero: Que idade tinhas tu, meu querido amigo, quando vieram os persas?

Quando vejo essa efervescência de egos nos suplementos literários, os grupinhos se assenhorando da mídia e do poder, sinto um certo tédio salomônico. E durante todo esse encontro eu tenho um olho no passado outro no futuro. Quer dizer: tento relativizar as coisas. Imagino, por exemplo, se em 2062 resolvessem fazer um congresso para saber quais os temas e problemas discutidos na literatura brasileira neste santo e profano ano de 2012.

Pense nisto, cara pálida. Parece longínquo. E, no entanto, lhe digo: 2062 está ali na esquina e zomba de nossa pretensão.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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