04.11.1986
Arte egoísta. Esses poemas que a gente lê e não nos dizem nada. A arte egoísta. Esses quadros que a gente vê e não nos dizem nada. A arte egoísta. Essas músicas que a gente ouve e não nos dizem nada.
Os autores pensam que assim estão sendo objetivos, modernos, construtores, inventores de alguma vanguarda.
É uma obra pobre. Rala.
Um traduz um poema, um livro inteiro de poemas. Mostra sua habilidade. Meu Deus! Como sabem línguas! Mas os poemas não dizem nada. Apenas nos contam que o tradutor é um perito, uma pessoa hábil.
Hábil e egoísta.
Aí vai, pego um texto generoso de um poeta que eles julgam secundário. É uma poesia generosa. Tal poeta não está tentando me convencer o tempo todo de que é inteligente.
Se você quer que eu diga que você é inteligente após ler seus poemas ou traduções, direi: você é inteligente. Mas direi mais: é um poeta pervertido. Um poeta que se perdeu.
Há o artista que é avaro. Não faz obra de arte. É um fetichista. Faz obeliscos. Inúteis no deserto.
Não se pode mentir quando se escreve. O leitor percebe. Só outros igualmente mentirosos se acoplarão ao texto desse mentiroso.
Por isso, o artista egoísta, avaro, tem ódio e difama o que é lido e amado. Ele pensa que o sucesso do outro é uma tramóia qualquer. Como dizia Pound: “Piero della Francesca não veio da usura”. Com usura nenhum poeta faz um poema que perdure. Baudelaire não veio da usura. Guimarães Rosa não veio da usura. Clarice Lispector não veio da usura. Nem Nelson Rodrigues. A usura estética pode esterilizar. Graciliano é enxuto, mas não é avaro ou egoísta. Jorge Amado tem muitos pecados, menos o da usura (literária).
Leio alguns poemas que se pretendem formalistas. São textos de usurários.
01.01.1987
Ano-novo. Quanta coisa aconteceu e eu não registrei. Isto não é um “diário”. Nem sei o que é. Não o queria jamais ver utilizado. Talvez anotações para uma futura revisão de nomes e momentos.
Leio The roots of treason: Ezra Pound and the secrets of St. Elizabeth’s, de E. Fuller Torrey, que Fernando Sabino me emprestou depois que se entusiasmou com meu artigo O que fazer de Ezra Pound (no JB e Jornal da Tarde). Esse livro é um pungente relato da vida desse pobre diabo. O final, tratando de sua decadência, nos ensina a repensar o sentido da vaidade dos criadores. Digo “pobre diabo” e tenho segurança do que estou falando. Como disse naquele ensaio ao examinar a obra de Pound, já no canto XIII a sabedoria confuciana nos adverte:
— Qualquer um pode chegar a excessos.
— É fácil atirar além do alvo.
— É difícil fixar-se no meio.
Os cantos é uma obra “excessiva” tanto ideológica quanto formalmente. Ao final da vida, tendo conhecido a prisão e o hospício, Pound declarou não apenas que ele “estragou” sua obra, mas explicou: “Minhas intenções eram boas, mas enganei-me na maneira de alcançá-las. Fui um estúpido. O conhecimento me chegou tarde demais… Muito tarde me chegou a certeza de nada saber…”.
Fim de março de 1987
Em Paris, participando do Salão do Livro com dezenas de escritores brasileiros; debates variados, que comentei em crônicas no JB.
Vou às livrarias, sobretudo à ampla FNAC. Livros aos montões. Sobre todos os assuntos. Chego à estante de poesia: Apollinaire completo, Aragon, Éluard, muitos outros. Começo a folhear poetas menos conhecidos. Um tédio, em geral. Nos grandes poetas, não, há sempre alguma coisa, um ego vigilante e contagiante. Mas nos poetas médios, que tédio!
Não sei como podem os poetas desejarem que o público compre seus livros. No romance, pelo menos, tem a história. Aqui, só anotações subjetivas, pífias. Assim, como se queixar do público?
Vejo nas revistas francesas uma enquete: o público francês não conhece os poetas depois de Éluard, Aragon, Prévert. Não há poeta de prestígio depois dos grandes.
Será que no Brasil é diferente?