02.06.1982
Visita a Berlim Oriental: fui a Berlim-Leste. Na passagem, ao pé do muro, tanto na ida quanto na volta, perdemos uns trinta minutos. Tem-se que sair do ônibus, fazer fila, ser examinado nos olhos (sem óculos) pela polícia. O ônibus é revistado, o passaporte é anotado e pagam-se 25 marcos. A viagem do lado de lá é um fiasco. É um exercício de imaginação, porque não mostram nada. O ônibus pára num vasto monumento aos heróis soviéticos, no meio de um bosque, e também um restaurante na beira do rio. O guia (comunista), com sua famigerada pronuncia texana (diz que já foi prisioneiro na Inglatera e nos EUA), fala disparado um discurso oficial, passando pelos prédios e avenidas sem dizer nada do que nos interessa. Mostra as lojas que têm inscrito na porta HO — todas do governo.
Na rua, pessoas mal vestidas. Não há alegria. A cidade está (na parte que mostram) reconstruída. Mais do que eu pensava. E estão reconstruindo ainda algumas igrejas. Um grupo de mexicanos vindo da Checoslováquia descreve que tudo lá é muito triste: filas e filas para comprar um só tipo de produto. Também na Alemanha Oriental as vitrinas são paupérrimas.
Vi vários grupos de crianças e turistas que não sei se são do lado comunista (provavelmente, não). Não sei se comunista faz turismo. No restaurante beira-rio, velhas dançavam com velhos, e todos os velhos comiam a mesma sopa. Mas o que me espantou mais foi ver que o olhar dos alemães de lá não tinha nenhum brilho ou inquietação. Pareciam todos desligados do século 20, como os provincianos brasileiros de minha infância. Só que mais infelizes.
A princípio, me pareceu que talvez aquela ordem e falta de desejo e ambição fossem uma coisa certa. Mas regressando ao lado de cá, vendo o desejo nas vitrinas, nos corpos, nas roupas, nos carros e nos restaurantes, confesso que aquilo tudo que vi do lado comunista me pareceu, então, meio castrado. E ainda mais paradoxal: o que eu estava achando meio monótono desde minha chegada a Berlim, depois de ter visto a quaresma comunista, pareceu-me o cúmulo da carnavalização.
Esse socialismo aí é o mais anti-erótico que já pude imaginar.
No festival Horizonte da Arte e Literatura Latino-Americana: uma mesa redonda com o antigo presidente da República Dominicana Juan Bosch. Parecia uma sessão do comitê do PC. Claribel Alegría fazendo um discurso sobre a Nicarágua totalmente datado dos anos 1950: paixão absoluta. Silenciou sobre dois assuntos importantes: a dissidência do Comandante Zero e o massacre dos índios mosquitos pelos sandinistas atuais.
(Juan Bosch foi presidente da República Dominicana por sete meses, depois que Trujillo foi derrubado em 1961. Dedicou sua vida a lutar por seu país, vivendo mesmo em exílio. Curiosidade: Vargas Llosa, que estava naquele Festival Horizonte, viria a publicar A festa do bode, sobre a ditatura de Trujillo.)
Os melhores foram os representantes de El Salvador e de Porto Rico. Este apresentou um belo texto biográfico sobre o problema da identidade cultural a partir mesmo da alfândega, onde não o reconheceram como porto-riquenho mas o consideraram americano.
Encontro por acaso com José Guilherme Merquior perambulando pela Kurfurstenstr Strass. Nos sentamos num café e conversamos efusivamente. Eu falando destas idéias que registro aqui, ele, de seus projetos e sua candidatura à Academia Brasileira de Letras, concorrendo contra Arnaldo Niskier. A ABL virou mais do que nunca um lugar político ou de iniciação à política literária: Gal. Lira Tavares, Sarney, Castelinho, Portella, etc.
No Festival de Berlim, me surpreendeu Manuel Puig. Embora tímido, fez uma bela exposição sobre a guerra das Malvinas, e contou aquela piada histórica, que parece ser de Borges: os outros latinos “descienderan” dos incas, maias e astecas, mas os argentinos “descienderan” dos navios.