Vende-se uma casa

O onde escrevo não é importante, mas o onde leio é o território do prazer
Miguel Sanches Neto: amor pelos livros das mais diversas formas
01/04/2004

Por causa de minha mulher, designer de interiores, acompanho as revistas de decoração e confesso que prefiro estas leituras à maioria das disponíveis em tal formato. Uma coisa que observo nas revistas européias é que sempre aparecem cômodos com nichos de leitura, prateleiras vergadas pelo peso de velhos volumes, e isso em várias faixas econômicas, pois ler é algo corriqueiro. Nas revistas brasileiras, os livros praticamente não têm visibilidade fora das tradicionais mesas de centro, onde estão os volumes sobre arte, objetos meramente decorativos, revelando assim a pobreza de palavras de uma sociedade que vive mais para os espaços coletivos.

Construída em duas fases, a primeira em 1997 e a segunda em 2003, nossa moradia foi sendo organizada para longos períodos de reclusão. Deve estar muito distante do padrão ideal das habitações da classe média brasileira. Num terreno de 15 por 40, levantamos a casa com o recuo mínimo da divisa da frente, cinco metros, destinados a um jardinzinho com caminho de pedras — de um lado um bambu musso; do outro, três cicas.

Na parede do hall de entrada, que se comunica por um degrau com a sala de visita, há apenas uma chapeleira dos anos 30, um tapete e duas poltronas. É neste espaço fresco, o piso da área térrea é todo de cerâmica, que gasto parte das manhãs, quando o sol nasce do outro lado da casa.

Na sala de visitas, com imensos sofás coloridos, uma mesinha de centro de ferro e um velho armário holandês de linhas retas, cheio de livros, uma mesa de imbuia redonda feita com os restos de uma peça do início do século, não apenas recebo os poucos amigos, em casa nunca há festas ou comemorações, mas também leio deitado, movendo os almofadões para acomodar melhor as costas.

Em frente a esta sala, separada por uma porta de vidro e dando para o jardim, fica a pequena saleta com janela de vidro. É quase um solarium, mobiliado com sofás de vime, meu lugar preferido no começo da noite, quando, vidraças abertas, entro em contato com a rua.

Entre o piso térreo e o superior, localiza-se um espaço de passagem destinado à sala de televisão, com sofás, também usados para leitura, principalmente depois que todos vão dormir.

No quarto de visita, apesar do armário com prateleiras e uma bancada com lâmpada de leitura, o móvel que domina é a poltrona, acompanhada pela luminária. Nas insônias entre duas e cinco da manhã, uso este lugar para me deliciar em um dos muitos livros que estão sempre espalhados pela casa.

Se está para amanhecer, gosto de ler numa cadeira de balanço em meu quarto, tendo ao fundo uma parede de tijolos de vidro, apenas a luminária acesa, para não perder a chegada do dia. No quarto, há ainda uma poltrona, com molas que rangem desde a década de 20, recapada com um tecido cinza, que forma conjunto com um armário do mesmo período em que me esperam mais livros. No quarto, gosto de ler principalmente nas tardes de fim de semana, depois da sesta.

Dentro da casa, os livros são encontrados apenas no varejo, estão por ali os que vão ser lidos nos próximos dias, perfilados em prateleiras ou abandonados no lugar mais próximo de onde eu os estava lendo. A casa não tem a função de arquivo, é lugar de trânsito. Depois de lidos, eles vão para a biblioteca, construída a partir da divisa dos fundos do terreno, 70 metros quadrados sem janelas, apenas uma linha de vidros móveis para ventilação no alto da parede, e a porta do século 19, com suas janelas de vidro e grades em ferro sem solda. Na biblioteca, construção que literalmente é um caixote de livros, projeto de André Largura, ficam as várias prateleiras de aço, destas bem comuns, a mesa do computador, o arquivo e um velho sofá de dois lugares, coberto por uma colcha azul celeste. Este sofá serve para a consulta mais demorada de alguma obra. Para as folheadas rápidas, uso as banquetas de metal, displicentemente esquecidas diante das estantes.

Entra-se na biblioteca por uma varanda formada por duas pranchas de cimento cru, onde me sento, nos fins de tarde, para contemplar os mais belos pores-do-sol. Na varanda foi pendura uma das nossas redes, ao lado da moita de bambus que cresce entre pedras roliças de rio. Nesta rede e na que fica na sacada de meu quarto, faço as leituras mais amenas. Elas já estão bem desbotadas, pois permanecem sempre estendidas e não as recolhemos nem em dias de chuva.

Entre a biblioteca e a casa, localiza-se nosso melhor espaço, um jardim com palmeiras e outras plantas. Nas ensolaradas manhãs de domingo, gosto de ler deitado de bruços numa esteira sobre a grama, acompanhando de perto o trabalho das formigas.

Logo depois do almoço, leio no banco de jardim sob as palmeiras, observando a algazarra dos pardais nos muros, o andar episcopal dos sabiás na grama, os reflexos do sol nos vidros elevados da biblioteca.

À tardezinha, sento em torno da mesa de praia, dessas de alumínio pintado, centro de um pátio de cimento que separa a casa do jardim, e leio na companhia agradável de uma cerveja, da cuia de chimarrão ou de um copo de suco.

Estes meus muitos lugares de leitura denunciam minha inquietação, estou sempre passando de um assunto a outro.

O onde escrevo, no computador da biblioteca ou no do quarto de empregada, transformado em mini-escritório, não é importante para mim, mas o onde leio é o território do prazer, em nome do qual fomos erguendo e organizando nossa casa. E estes espaços sempre crescem. Pretendemos agora plantar um plátano e, sob a pérgula, que está sendo coberta por trepadeiras sete-léguas, instalar um banco de madeira com almofadas impermeáveis.

Minha mãe conta que, em nossa família de agricultores, os pais julgavam os pretendentes das filhas pelo estado da roupa. Se exibiam as partes frontais das calças gastas, eram trabalhadores. Se os remendos se localizassem na região vergonhosa das nádegas, eram preguiçosos e deviam ser evitados. Não sei se isso influiu em minha obsessão por bancos, poltronas, redes, cadeiras, mas o fato é que o leitor profissional que sou não consegue deixar de amar estes objetos para o ócio instrutivo, centro de minha vida e de nossa casa.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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