Poemas inválidos

Leia os poemas "A portrait", "O que me é estranho", "Último alento", "Carta", "Circense", "Desesperadamente lírico", "Adendo quase romântico", "Preparação para a morte", "Medidas", "Consolo de um colono"
Miguel Sanches Neto, autor de “A primeira mulher”
01/11/2003

“A poesia é uma arte nômade.”
Joseph Brodsky

1. A portrait

Teve o poeta
que fincar suas raízes
nas profundezas da terra
árida da poesia
e podar seus galhos
mais tenros
sorver a umidade pouca
penhorar folhas ao outono
e concentrar toda a sua força
para segurar
um fruto mirrado
no ramo inatingível

2. O que me é estranho

O que fui em menino
é hoje um baú lacrado
que alheio à minha história
tenho como inquilino

em vão tentam arrombá-lo
as raízes da memória

3. Último alento

Na extrema solitude
o velhinho volta à infância
(seu derradeiro pertence)
e sai brincando na rua
sob os chicotinhos da chuva

4. Carta

Postaram minha vida pro futuro
sem sequer definir o rumo

quando, extraviado,
quis voltar ao princípio
não havia o endereço
do remetente longínquo

5. Circense

Na tarde
toldada de cansaços
chega a noite alegre
com seu manto de sombra
todo furado

6. Desesperadamente lírico

O que em tua face vejo
são dois olhos
ancorados no infinito

o que em tua face beijo
não são lábios
e sim a cicatriz
mal-curada do desejo

7. Adendo quase romântico

Acolhes tudo que brilha
O espelho dos olhos
é tua única mobília

8. Preparação para a morte

Faço em vida meu testamento:
que tudo fique ao vento!

9. Medidas

Do pai herdei
estas roupas
de um homem
de estatura mediana

por elas
tive que ajustar
minhas medidas

10. Consolo de um colono

Nem eu nem esta árvore
perdemos outros horizontes

apenas uma pequena aragem
carrega meu cheiro

e algumas folhas da árvore
para outros lugares

esta é até agora
nossa única viagem

11. Testamento de um solitário

Eis o fim
de tudo

e não tenho
a quem deixar
esses restos
de futuro

12. July is the cruellest month

Julho é o pior dos meses
péssimo para quem quer continuar
julho é o mais cruel dos meses
vida dolorosa de mártir
cultivando o seu talvez

Eliot morreu em julho
em julho forjo esta morte
e este poema pobre
tudo frutifica desânimo
não abro o jornal nem a janela
estamos no pior mês do ano

quem escreve em julho
sabe que as palavras
são folhas secas
e que escrever é perdê-las

os pássaros mudos
seguem para o norte
e as flores sabem
que amanhã estarão mortas
somente as de plástico
sofrendo leve descoloração
sobrevivem a hora

as borboletas buscam pouso
em álbuns de colecionadores
os pardais se aprofundam
na escuridão dos forros

é julho — uivam os ventos
levando braçadas de folhas

vedo todas as frestas
de meu chalé de madeira
com panos jornais velhos poemas

em julho não lemos nem escrevemos
apenas contemplando
os estragos do tempo
nos desgastamos

é julho — grita lá fora a sombra
e ninguém chega
pelo ralo do banheiro

frutificamos para a podridão
— os poetas-árvores gritam —
já nos tomaram as folhas
e trememos de frio
oh como pesam
estes frutos imprestáveis
nossos ramos vergam
e ninguém
nem o vento
vem colhê-los

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho