Incertidão de nascimento

O nascimento aos quatro anos em Peabiru e um túmulo como herança
01/08/2003

A tua verdade está nas ruas de Peabiru, me diz meu mestre, alisando sua alvoraçada sobrancelha de lobisomem. E depois lembra que está mudando Cyro dos Anjos, para quem a verdade morava na rua Erê. Digo que logo deixo de lado essa gentinha encardida e ele ri, bobagem das bobagens, cada vez você vai arrochar mais o laço, a gente nunca se livra da terra natalícia. Desconverso, arrastando-o para outros assuntos, mas o mestre se cala e logo desaparece, deixando avivadas as minhas verdades.

Nasci em Peabiru na véspera de meus quatro anos, depois de ter tido várias ereções prematuras, e correm depoimentos, todos de origem confiável, que nem chorar eu chorei, já tão acostumado às agruras de um meio agrário e ágrafo, por falta de escola e estudos e não pela inexistência de palavra em letra de fôrma. Nossa distinta mãe, mulher de mexer em panos, agulhas e pedais, não era nenhum fenômeno para parir tão retardatária criatura e não figuramos nas listas de aberrações surgidas da cruza interfamília, embora eu desde sempre, o que é uma nossa terrível tradição, nunca menosprezasse certas pernas de primas e outras parentas próximas.

O milagre de meu tão tardio nascimento se deu por motivos mais trágicos, porque tragédia é que nem geada, sempre chega, mesmo quando falha. Pois estava eu ainda sendo gestado, menino fraco de idéias e de músculos, me preparando para o mundo, visto meio a distância, quando este intruso resolveu precipitar tudo e me levar o pai antes de ele me completar a criação.

Vem deste nascimento forçado minha aversão à água, mesmo a mais mansa, pois taí um elemento em que não dá para botar confiança, tão diverso desta fidelidade que sabe sempre ter com a gente a terra.

Incansável comedor de horizonte, meu morredouro e inquieto pai saía pelos sertões paranaenses, ainda sem o solado asfáltico e os braços longos das pontes, despertando desejos naquela terra vermelha que queria virar poeira, com seu caminhão acostumado a café e cafetinas, cruzando rio no lombo chato das balsas, até que uma delas inventou de estranhá-lo, derrubando-o nas águas embarreadas do Rio Ivaí, num perdido patrimônio. Morando lá pras bandas de Londrina, no povoado que surgiu do lado de fora da cerca da Fazenda Paraíso, e tendo demorado muito o resgate de seu corpo nada nadador, um certo meu tio enterrou seu afogado irmão na cidade de Peabiru, local amaldiçoado por meu pai por ser zona comandada por seu sogro, coronel de gados e engodos, muito bem abastado e brabo, meu odiado avô.

Não tendo meios para manter a interrompida família, minha moça mãe fez virar passado a terra que comeu seu umbigo e nos arrastou para Peabiru, na crença do auxílio paterno que, assim como dantes nunca tinha vindo, não foi daquela vez que veio. Em tais desventuras acabei nascendo, prematuro, aos quatro anos incompletos, mas mais prematura ainda foi minha premida irmã, que mal tinha feito dois anos e já estava atirada nesse mundo tão cheio de durezas, mas também lá com seus domingos.

Vocês me vieram com a morte de vosso pai, profetizava nossa mãe, com seu jeito bíblico de desdizer as coisas. Foi assim toda a infância, vendo o túmulo coberto de cerâmica São Cateano, encerado durante décadas pelas quatro mãos viúvas, da mãe e da enrugada e paterna avó.

Depois de aleitado e letrado, descobri minha incertidão de nascimento, que me dava por nascido em Bela Vista do Paraíso, em 1965, e desconhecia a vera terra natal, que até aquele então era Peabiru, onde cheguei por um atalho em 1969. Intrigado, perguntei pra minha mãe, quem mentia? a letra impressa ou a palavra falada?, e minha mãe se irritou enquanto arrematava a bainha do vestido de uma das putas da cidade e inquiriu o que eu estava pensando? que ela era dessas de espalhar lontras? E eu, alegre por ver confirmada a trama de meu pós-nascimento, dei por lavrada esta verdade.

Ficou definitivamente assentado em minha cabeça oca que se nasce em qualquer idade e que muita gente que encontramos por aí sequer nasceu e talvez nos deixe sem nunca ter nascido, o que me parece por demais de triste. Se perguntam a meus documentos de onde sou, eles logo mostram, letra por letra, a falsa localidade e o não menos falso ano, mas se perguntam pra mim, repito o nome e o ano legendados na memória.

Meu mestre está escarrado de razão, não há como esquecer esta terra natal que meu pai me deu ao morrer.

Em finados, vamos ao cemitério da cidade lavar o natalício túmulo para poder polir o vermelho com cera poliflor. É que agora, e de definitiva forma, se sabe que terra natal não é o onde se nasce e sim o onde se morre, mesmo que seja, como ocorreu com meu pai, contra nossa vontade. Mas essa contrariedade não acontecerá comigo, recebi de herança um túmulo, que mantenho luzindo, com todo o amor de um bem querido filho.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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