Do perigo das idéias fixas

O desejo do autor pela aprovação amorosa de seu trabalho
Miguel Sanches Neto, autor de “Chá das cinco com o vampiro”
01/01/2004

Como escrever é carência, estratégia para preencher vazios, o autor sempre quer a aprovação amorosa de seu trabalho. Por isso acaba invariavelmente se frustrando, por melhor que seu livro seja. Haverá sim aprovação, algumas meramente diplomáticas, escritas com palavras gastas em cartões ligeiros, outras de uma verdade comovente, mas é impossível controlar a rejeição, que veste os mais variados trajes.

Um autor, cujo livro teve cobertura completa nos canais de comunicação, sofre porque certo jornalista não o citou em sua coluna. De repente, por essa omissão talvez involuntária, sua alegria se perde e ele se sente vencido, sem a mínima vontade de escrever.

Um ser com os nervos à flor da pele, assim é o escritor. E uma pele fina, tão fina que qualquer palavra mais áspera a rompe. Muitas vezes, não precisa haver nem a palavra. Basta um silêncio. E ei-lo todo esfolado diante de sua imperdoável consciência.

Com o lançamento de Chove sobre minha infância, recebi, de vários leitores que adoraram o romance, restrições quanto a este ou àquele capítulo. No começo, pensei em cortar os capítulos na segunda edição, pois queria agradar o interlocutor tão sincero que tinha corrido o risco de me alertar para as fraquezas do livro. Mas como as opiniões continuaram — e, felizmente, continuam — chegando, fui percebendo que o que parecia, para certa pessoa, um trecho menor era o melhor para outra. Não havia consenso entre elas, cada uma projetando seus conceitos e preconceitos na escolha dos melhores e dos piores momentos do romance.

Esta diversidade de opinião aumentou com Hóspede secreto, minha primeira coletânea de contos. Não prevalece a menor coerência nas escolhas — feitas em jornais, revistas, cartas e verbalmente — dos bons contos do livro. Cada um escolhe o seu, pois se trata de uma antologia, elegendo-o por motivos os mais diversos. A multiplicidade de razões de meus leitores me fez perceber que todos os 13 contos eram o melhor conto do livro — sob pontos de vista antagônicos. E isso me pacificou, definitivamente, com o volume, que não sofrerá maiores mudanças.

Digamos que tal fato me tornou invulnerável às restrições, permitindo-me um amor mais pleno pelo livro. Posso, portanto, continuar produzindo minha literatura, que ao mesmo tempo contentará e descontentará quem, amorosa ou rancorosamente, se dedicar a ela.

Com os anos, depois de muito sofrimento, o escritor vai desenvolvendo esta autodefesa. Como o mundo o nega, e o negará sempre, uma vez que inexiste a desejada unanimidade, ele passa a se valorizar mais e mais, criando uma atitude autista, de exílio em seu mundo, a ponto de nada mais atingi-lo. Só assim, isolado em sua vocação, consegue força para escrever.

É aí, então, que ele se torna um ser desagradável, pois a soberba anula o outro, visto como um irritante desmancha-prazeres, sem direito a exercer um gosto literário, necessariamente seletivo.

Como escrever é carência, estratégia para preencher vazios, o autor sempre quer a aprovação amorosa de seu trabalho, mas é preciso que seu amor-próprio, inflado ao máximo, passe pela calibragem destes leitores mais críticos, que na maioria das vezes — e falo com a experiência de quem atua nas duas frentes — não está disposto a usar palavras acolchoadas, preferindo as que ferem fundo.

Como escrever é carência, estratégia para preencher vazios, o autor sempre quer a aprovação amorosa de seu trabalho.

O autor sempre quer.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho