O símbolo de Peabiru é um rolo compressor, uma máquina de fazer asfalto — lembrança de nosso breve iluminismo desenvolvimentista. Quem passa pela rodovia que liga Maringá a Campo Mourão, vê a velha maquinaria no trevo de minha cidade, símbolo de um lugar que desejava ardentemente viver no asfalto. O asfalto veio, mas continuamos presos ao tempo mágico das ruas de barro.
Uma cidade com cinqüenta anos de história, formada às pressas por desbravadores que não conheciam o ócio para os trabalhos de memória — assim é Peabiru, que passou, saltando etapas, de lugar próspero para lugarejo decadente, deixando uma infinidade de órfãos, pois ela já não podia mais nos dar condições de permanência. Peabiru hoje, com seus 13 mil habitantes, é mais populosa no resto do país do que em seus limites geográficos, e isso não acontece apenas com ela, é também o caso da maioria das pequenas cidades brasileiras.
Espalhados por outros lugares, os peabiruenses seguem sentindo falta da terra natal, sem poder voltar, porque o caminho de volta é sempre uma estrada ilusória. Resta-nos então viver nestes limites míticos da memória da cidade, e não tem um dia em que eu não pense nela.
Conheço sua geografia como o corpo da amada, pois sempre a percorri a pé ou de bicicleta, estudando cada rua, cada casa, cada terreno baldio. À noite, não nos reuníamos em lugares fechados, mas na rua, sentados em muros, e gastávamos a vida (eta vida besta, meu Deus!) conversando. Saí definitivamente de lá aos 21 anos, depois de várias tentativas frustradas. Mas é como se nunca tivesse saído. Outro Miguel Sanches continuou-me e hoje devo ter um duplo, um agricultor ou um pequeno funcionário, que imagina como seria sua vida se tivesse rompido os laços com a cidade.
Em momentos de depressão, ele se arrepende de ter ficado, olha a mulher, cada ano mais gorda, os filhos estudando na mesma escola em que fez o primário e o ginásio, e sonha com outros lugares. Passear por São Paulo, caminhadas no calçadão de Copacabana, temporada de ópera em Nova Iorque, esse meu outro é mesmo um romântico incurável — bem feito que tenha ficado na cidade.
Escrevo esta carta para informá-lo que a sua outra vida, a minha, é bem diferente. Professorzinho de província, leitor em tempo integral, ajuntador de frases, é tudo isso que ele teria conseguido ser se não tivesse deitado raízes naquela terra vermelha. E não há grandeza nenhuma em levar a vida entre livros. Talvez seja até uma pequena vileza. Melhor é ficar sentado em muros, bebendo em bares sórdidos e sonhando com uma vida que nunca virá. Pelo sonho, curamo-nos de nossa pequenez.
P.S.
Na edição passada do Rascunho, publiquei os “Poemas inválidos”, sem nenhuma explicação. Não são textos novos, nem posso considerá-los meus. Foram escritos por um jovem poeta no final da década de 80 e fazem parte de um livro intitulado Inscrições a giz (Florianópolis: FCC, 1991). Eu já não tinha mais nenhum exemplar deste livro, mas recuperei alguns que estavam com Carmem Antônia Sanches, minha irmã e mais fiel leitora, figura tão importante na minha vida que entrou em Chove sobre minha infância para desmascarar o narrador, escrevendo-lhe uma carta reveladora.
Aqueles poemas pertencem a um Miguel Sanches intermediário, uma espécie de transição entre o homem que ficou perdido em Peabiru e o que se perdeu por tantas cidades.
Como estou na fase bandeiriana de consoada (“lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta — cada coisa em seu lugar”), tenho dedicado meu tempo a organizar os escritos da juventude. Revisei toda a coletânea Inscrições a giz, publiquei meus velhos hai-kais (Abandono, 2003) e estou editando os fragmentos de uma pequena correspondência amorosa (Você sempre à minha volta. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2003).
Se não posso negar o passado, tenho ao menos o poder de corrigir algumas de suas imperfeições.
Caminhos de peabiru
Há um caminho
por onde passo
e outro que passa por mim.
Um anda por meus passos
e não tem fim.
O outro é onde meus passos
perderam-se de mim.