Cadernos escolares

Os cadernos de rabiscos são o território sem lei dos pensamentos vagabundos
Miguel Sanches Neto: literatura que escraviza.
01/03/2004

Gosto de cadernos de capa dura, sem espirais, verdes e azuis, eventualmente vermelhos e amarelos, jamais com imagens. Este tipo de material é usado hoje apenas para despretensiosas tarefas de escrita. Meus cadernos vão ficando incompletos, cheios de rasuras e textos abortados. Minha filha os usa para desenhar e arranca as folhas, desconjuntando a encadernação.

Neles, tudo é permitido, até a tentativa de poema.

O maníaco da madrugada
lê enquanto cantam os galos.
Não há no mundo mais nada,
apenas este homem acordado.

A cidade toda ainda sonha,
mas persiste este homem
que, em silêncio, doma
o espanto da noite insone.

Quando a mulher se levantar
este outro mundo já não existirá.
O homem terá feito a barba
em meio a tarefas que não tardam.

É a ele que as madrugadas amam,
por ele desfazem-se as distâncias
e o tempo volúvel se dissolve
e ele não se sabe velho ou criança.

Perdidos em gavetas, meus cadernos de rabiscos são, principalmente, o território sem lei dos pensamentos vagabundos: “Meu lugar é onde não estou. Se eu estivesse lá, lá não seria meu lugar”.

Nunca consegui fazer deles um diário organizado, avesso que sou aos funcionários públicos da escrita. Em alguns momentos, escrevo muito; em outros, pouco. Embora várias vezes tenha tentado preencher as linhas acolhedoras com minhas inquietações diárias.

27/03/99 – Estou escrevendo um conto e recebo um telefonema de X., que fala sobre o único assunto que ele conhece — o próprio umbigo. Estava com grande ânimo para escrever, com uma crença inabalável na literatura, e tudo se desfaz. X. não sabe escrever e consegue aplauso de um público que o acha experimental. […] Volto a escrever com algum esforço e a história se impõe contra a arte dos impostores. O conto retoma seu ritmo, sinto que ele cresce sozinho. Mas acaba a energia elétrica e perco parte do texto que estava no computador. É preciso recuperar os parágrafos perdidos, mas será outro o conto que agora vou escrever.

13/08/03 – Gastei a manhã preparando a remessa de um livrinho […]. Não consigo fazer pacotes e isso me irrita. Estou deprimido, perdi meu dia com algo sem importância […]. Tudo tão sem sentido nestes últimos tempos, fui deixando cargos para me dedicar à literatura, mas não há nenhum desejo de escrever. O diário, que começo neste momento, é a tentativa de frear qualquer projeto de livro […]. Estou parando com tudo. Esta é a confissão do fracasso premeditado. Espero continuar assim, sem pôr minha alegria na literatura […]. Mas a ansiedade me corrói. Escrevo e sofro. Não escrevo e sofro da mesma forma. A solução talvez seja escrever o mínimo […]. Até quando manterei este diário? Talvez não o continue amanhã. Talvez comece um romance. [O caderno de 192 páginas ficou apenas com as anotações deste inútil 13 de agosto]

Nestas folhas muitas vezes coladas pela umidade, dormem projetos de livros inviáveis, como o do volume de contos que se chamaria Ilhas errantes, com relatos extraídos de Heródoto. Listo algumas das passagens que virariam ficções. 1. O embalsamador de múmias estupra os cadáveres antes de fazer o serviço. 2. Depois de subjugar facilmente um povo, Sesóstris erigia uma coluna e gravava uma genitália feminina para simbolizar a covardia daquele povo: “conquistei esta buça com a força de meu dinheiro”. 3. Os maridos conhecem a fidelidade da mulher pela cor da primeira urina do dia. 4. Na Babilônia, as mulheres eram sacrificadas para poupar a comida destinada ao setor produtivo. 5. Em determinada região, na cerimônia de casamento, o marido franqueia a todos os convivas a noivinha até então virgem. 6. Uma rainha destronada pede tropas a seus conselheiros e recebe um fuso e uma roca.

Dá para perceber que Heródoto era erótico e machista, ou talvez eu é que assim o seja, pois se me interessei por estas passagens.

Não faltam também haicais rascunhados, pequenos rabiscos que já não fazem sentido, mas que ficaram nos cadernos com o mesmo direito de permanência de textos mais nobres.

 Jardim em sombras
Bruxuleiam os pirilampos
ao murmúrio de árvores que sonham

Nestas páginas esquecidas, encontro centenas de títulos que vou deixando anotados para um dia batizar meus livros. Alguns são razoáveis, a maioria muito ruim, anoto apenas um que me pareceu engraçado: Tiroteios críticos do vilão mexicano Don Miguelito, el cruel — seria para uma reunião de meus textos negativos. Um outro título, mais sucinto, mas não menos irônico, poderia ser: O vinagre dos dias.

E vejam esta anotação para uma novela que nunca vou escrever. “Um advogado que se acostumou com a burocracia, homem metódico, sonha escrever um romance, tendo passado centenas de horas, depois do expediente, diante de sua máquina de escrever. Um dia, prestes a se aposentar, ele chega à repartição e não encontra mais a velha máquina, substituída por um computador. Entra em pânico, pois acha que o romance tão longamente meditado estava retido nas teclas da máquina, e que só dela sairá o livro. Então começa a procurar a máquina, descobrindo que fora vendida a um comerciante de móveis usados. Localiza a loja e confronta-se com mais de 50 máquinas iguais. Compra todas e as leva para casa, passando suas horas de folga na frente de uma delas, cada dia uma diferente, na esperança de que o livro saia, espontaneamente.”

E há, por fim, as idéias para crônica. Uma delas seria sobre os nomes de vinhos portugueses, o estranhamento dentro do próprio idioma no confronto com rótulos que lembram erotismo (Periquita), fantasmagorias (Quinta do cachão — que lemos sempre caixão) ou caipirismo (Dão — que soa uma corruptela de dom).

Estes cadernos são verdadeiros brechós, aceitam tudo, funcionando como uma espécie de memória mobiliada com restos.

Lembrei-me de falar sobre eles por causa do começo das aulas. Embora já bem distante de meus anos de aprendizagem, continuo ligado àquela magia de possuir cadernos escolares e poder escrever qualquer coisa neles.

E.mail desta coluna: [email protected]

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho